Começar por onde? Talvez por um termo de comparação. Erguido
a partir do espírito voluntarioso de colonos e de pioneiros, em conflito
original com as raízes indígenas, o Novo Mundo necessitava de uma mitologia
própria como de pão para a boca. A velha Europa tinha os gregos e os romanos,
os nórdicos, tinha toda uma tradição pagã expurgada pela aculturação
judaico-cristã. Rastos dessa tradição seguiram até à América, desbravando
caminho para uma abrupta odisseia com os seus heróis e os seus vilões muito
peculiares. Jesse Woodson James (1847-1882) virá a ocupar um lugar especial
nessa parafernália de semideuses saídos já do Oeste norte-americano,
gerando-se acerca dele uma aura de fora-da-lei com princípios inabaláveis.
Para tal contribuíram sobremaneira os meios naturais de difusão popular em
vigor à época, nomeadamente os livros de short stories e as canções folk.
A tal propósito, talvez seja relevante ouvir o que o mais
recente Nobel da Literatura tem para nos contar: «Billy Gashade, o homem que
presumivelmente escreveu a balada do Jesse James, consegue levar-nos a crer que
Jesse roubava aos ricos para dar aos pobres e foi morto a tiro por um «cobardolas
de meia leca». Na canção, Jesse rouba bancos e dá o dinheiro aos necessitados e
no final é traído por um amigo. Ainda assim, e de acordo com a opinião geral,
James era um assassino sanguinário e era tudo menos o Robin dos Bosques de que
a canção fala. Mas é Billy Gashade quem tem a última palavra e leva-a aos
quatro cantos do mundo» (Bob Dylan, in Crónicas – volume I). A passagem tem o
propósito de fazer sobressair a força da canção popular enquanto estrume de uma
mitologia, levando as pessoas a acreditar em personificações elaboradas muito
aquém de um pressuposto de fidelidade ao real e à verdade. Não por acaso, numa
das melhores sequências do filme de estreia do grande Samuel Fuller,
precisamente intitulado I Shot Jesse James (1949), somos transportados para um
tempo em que os trovadores andavam de bar em bar a cantar e a tocar a troco de
tostões. Era, para todos os efeitos, uma forma honesta de ganhar a vida. Sequência de tal modo pertinente que Andrew Dominik (n. 1967) não hesitou em aproveitá-la,
com variantes muito próprias, no seu surpreendente The Assassination of Jesse
James by the Coward Robert Ford/O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert
Ford (2007). Nick Cave, responsável com Warren Ellis pela banda sonora, aparece
agora no papel de trovador onde dantes aparecia o actor Robin Short. Apesar de
no filme de Dominik não existir nenhuma troca de palavras entre o intérprete da balada de Jesse James e Bob Ford, assassino de Jesse James cruelmente retratado
na canção, a tensão estabelecida entre a letra e o seu objecto é deveras
impressionante. Essa sequência assinala o momento em que Bob Ford compreende
ter falhado no seu propósito final, é uma espécie de marco na psicologia de uma
personagem.
Superiormente interpretado por Casey Affleck, o Robert
Ford desenhado por Andrew Dominik é uma figura em si mesma tão ambígua quanto o
Jesse James materializado por Brad Pitt. Nele se misturam Édipo e Judas. O
jovem admirador de James não busca nenhuma recompensa, não age por respeito à
lei, não colabora com a justiça por supor ser essa a única saída. No seu
íntimo convivem o temor do discípulo face ao profeta e uma admiração obsessiva
que o leva a imaginar-se na pessoa de quem admira. Jesse diz que não sabe se
Ford quer ser ele ou como ele, mas Ford sabe. Ford quer os aplausos, quer ser
admirado pelos outros como Jesse James era. Não por inveja, nem por ambição,
antes por uma complexa intuição de inferioridade que o arrasta e destrói. Tanto
o filme de Samuel Fuller como o de Andrew Dominik se concentram mais na figura
de Robert Ford do que em Jesse James. É irrelevante saber se Jesse James era o
Robin Hood da balada ou o assassino sanguinário exibido pela ordem e pela lei
estabelecidas. Sabemos que roubava bancos e assaltava comboios depois de ter
lutado ao lado dos derrotados da Confederação, dizem-nos que matou inocentes
sem dó nem piedade. Inocentes assassinados sem dó nem piedade é prato diário
para servir nos banquetes do virginal poder. Certa e indiscutível é a desgraça
de quem o matou pelas costas, um homem que lhe foi fiel e a quem serviu com
militante admiração. Talvez esta seja apenas mais uma história de traição como
outra qualquer, não sendo por isso inesperada a antipatia reflectida sobre o
traidor. Mas este não é definitivamente um filme como outro qualquer.
Acompanhada de cenários naturais deslumbrantes, a psicologia das personagens surge
à superfície dos rostos como a imagem do peixe que se agita debaixo do gelo. É
sempre um reflexo inacessível aquele que o gelo das palavras permite observar, sublinhadas
em voz off por uma melancolia que trespassa toda a narrativa e nos permite
falar de cinema como quem fala de poesia.
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