Como despedir-me da terra que não senti? Em nenhum lugar
foi a alegria quem reinou. Talvez um certo bem-estar favorável aos nervos e às
palpitações, a ilusão de uma liberdade reduzida a ínfimas ausências: nada de
relógios, nada de horários, nada de livros de ponto, nada de calendários. Apenas
um diário onde anotamos a passagem dos dias, oferecendo a cada página meia
dúzia de linhas espontâneas, improvisadas, um desenho mal-amanhado, versos
toscos. Coisas de que nos envergonhamos sempre que as revemos. Lixo. Como
despedir-me de terra alheia? Jamais serei deste lugar, nem sei de onde sou, nem
sei se posso afirmar que sou. Nasci em pântanos de ódio, recordações péssimas
de vidas curtas, amesquinhadas pelo mexerico e pela intromissão, ruas curtas,
tão curtas e tão estreitas que parecem cordões umbilicais. Soube da casa os
cantos. Mas não fui dali, nunca. Emigrei para avenidas largas onde me perdi de
mim próprio e nunca mais me encontrei. Talvez tenha sido alegre numa madrugada
de Outono junto ao Teatro Nacional, a ler Rilke, não por estar a ler Rilke
junto ao Teatro Nacional mas por ter largado numa poça nojenta os versos
fastidiosos do checo. Junto ao mar sou sempre feliz, no meio do deserto sou
sempre feliz, perdido na floresta sou sempre feliz, a subir a montanha sou
feliz. Onde homens cabisbaixos passeiam dossiers de dívidas e mulheres dúbias camuflam
dores com artifícios estéticos, colocando saltos, passando lápis pelos olhos,
inventando texturas onde o tempo permite apenas decomposição celular, eu não
vislumbro qualquer resquício de alegria. Apenas ilusão. Poeta amigo escreve-me
sobre um dos meus suicidas, assegura que tivesse o finado reparado na montra de
pastéis, nas universitárias joviais, no pregão da vendedora de castanhas,
jamais teria, sem que ninguém saiba porquê, mandado a vida bugiar. Eu divirto-me
a contemplar vacas e bois, sarracenos, mas é de tédio e de saturação o meu
repasto. Sabemos a cura. Adiamos a cura. E como o povo asseguramos que boi em
terra alheia é vaca.
* Em sentido figurado e informal, vaca é sinónimo de sorte.
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