9.
os barcos ficam amarrados aos paredões
número um, número dois, número três do cais
e o frio aquece, ao redor dos guindastes
as grossas camisolas de lã dos estivadres
parados entre as encomendas e a última escala.
enquanto as docas estão ancoradas
vão contando como e porquê
viram, diferentes, as auroras boreais.
dizem: mais para cima é o gelo
ou a perfídia magnética do pólo...
no perigoso rebordo das lendas
o desconhecido não se relata
mas inventa-se, de ironia em ironia
pelos interstícios dos mapas.
é insuportável o reflexo do sol
neste frio e o mundo pode ser
um discurso impaciente
no meio de um grande silêncio.
ícaro teria voado para lá
onde dizem nascer os pássaros
e os gelos, mais a norte, se derretem?
é preciso explicar o inverso sentido dos climas
na transgressão dos animais... aqui
sabe-se de tudo como quem espreita
os vizinhos chegando aos bordos pelas escadas.
alguns dizem — no entanto —
que certos exploradores
foram mesmo silenciados pela loucura:
outro sol no centro do mundo.
R. Lino (n. 1952), in Atlas Paralelo (1984). Estreada em 1984 com Palavras do imperador Hadriano:
Primeira, Segunda e Terceira Séries (Coimbra, Centelha), R. Lino é uma das mais discretas poetas portuguesas contemporâneas. Além de moderadíssima
em obra publicada, prima pela reserva num tempo em que o culto da imagem tantas vezes sobressai diante da obra feita. Ainda em 1984, publicou
Atlas Paralelo na saudosa colecção Gota de Água, da INCM. Seguiram-se Paisagens
de Além Tejo (Rolim, 1986) e Daquíra (Frenesi, 1988). Refira-se que Atlas
Paralelo e Paisagens de Além Tejo constituiriam os dois primeiros volumes de
uma trilogia a ser completada com Mapas, sobre o qual não temos qualquer
notícia. Depois dos títulos vindos a lume durante a década de 1980, R. Lino regressou apenas em 2012 com : Predação: /
Urânia, Nós e as Musas (edição da Autora). Em 2013 a Companhia das Ilhas
publicou-lhe Baixo-Relevo, com poemas concebidos nos idos de 1984 e 1985.
Enigmática, esta poesia furta-se a definições programáticas. Nela reconhecemos a
relevância dos dados históricos e geográficos, deles surgindo uma linguagem sem
preocupações retratistas ou testemunhais. Climas, ambientes, paisagens, lugares, sítios povoados
por fauna e flora mormente campestres, atravessam esta obra sem que nela os elementos
rurais se sobreponham a uma criticidade ontológica sem fronteiras de qualquer
espécie. Paralela à geografia física dos dias, surge a geografia do poema
entendido não como representação, mas como realidade outra onde lugar e
história são assimilados e dessa assimilação decorrem como expressões do ser.
4 comentários:
Há um novo livro dela na Companhia das Ilhas: http://companhiadasilhas.pt/books/poliptico/
Já agora: em 2012, saiu um poema na antologia de homenagem '100 poemas para Albano Martins', creditado com o nome "Rosete Lino", lapso que a Autora, de viva voz (e escondida da câmara que filmava a sessão), lamentou vivamente durante a sessão de apresentação, referindo que a sua opção sempre fora não expor o nome (cito de memória).
obrigado
É eborense :)
Pois é, da terra das ossadas.
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