sábado, 19 de novembro de 2016

RECORDAÇÃO DO PAI


Batia com a esquerda,
por vezes cego de raiva.
A direita estilhaçada até ao ombro
num campo de batalha russo.

Quando chovia
a luva preta cheirava a cabedal
e doía-lhe o braço perdido.

Se estava de feição dava-nos dinheiro
e deixava-nos enfiar-lhe o elástico branco
pela manga da camisa.

Mais ainda que a força da sua esquerda
e os rompantes da sua ira
temíamos
a sua ternura sem jeito.

Talvez até o amássemos,
sentindo-lhe escondido o medo da solidão.
Mas acabávamos sempre a fugir-lhe.

Melhor me lembro
desse braço postiço
com a mão de couro preto
do que lembro o seu rosto.

Ainda estou a vê-la
imóvel na toalha branca,
ao lado do prato,
com a carne já cortada:

Incapaz de violência,
e de uma dependência inexprimível.


Hans-Ulrich Treichel (n. 12 de Agosto de 1952, Versmold, Vestefália, Alemanha), in Como se Fosse a Minha Vida, tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993), revista e apresentada por João Barrento, Quetzal Editores, 1994. pp. 13-14.

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