Maria Filomena Mónica nunca passou fome, nunca foi pobre, mas conhece os pobrezinhos como as palmas das suas mãos. Por isso escreveu um livro sobre os pobres, não queria ficar com todos os conhecimentos só para ela. Leia-se de barriga cheia.
13 comentários:
FPS
disse...
Questões: apenas quem já tenha passado fome pode escrever sobre esta? Não poderá um escritor vivo - e portanto que nunca tenha morrido - escrever um livro sobre a morte? Acredito que alguém que já tenha vivenciado determinada experiência tenha um conhecimento acrescido sobre esta, no entanto, parece-me possível alguém ser capaz de dissertar sobre algo pelo qual nunca passou (com base, por exemplo, na observação ou na informação já existente). Permita-me que realize estas singelas conjecturas, aproveitando para informa-lo que sou um verdadeiro apreciador das suas reflexões.
FPS e Anónimo, é óbvio que não. Subentenderam isso nas minhas palavras? Não era essa a intenção. Talvez o post devesse ser acompanhado da capa do livro, mas não quis abusar na publicidade.
Este ano morreu Alfredo Bruto da Costa. Não sei se algum dia foi pobre, se passou fome, mas reconhecia-lhe autoridade para falar sobre pobreza. À Maria Filomena Mónica reconheço tanta autoridade para falar sobre o tema como à Isabel Jonet.
Então, nos tempos da outra senhora, as famílias "tinham os seus pobrezinhos". Talvez a MFM tenha herdado alguns!! (Acho que estás a ser mauzinho. Os pobres são de todos)
Sebastião Salgado, talvez uma das pessoas no século XX e XXI melhor documentou a pobreza e a exploração dos homens por outros homens (há sempre ligação entre as duas), provavelmente também nunca passou fome (doutorou-se em economia, é latifundiário...).
«Os Pobres», assim como «Joga-se aqui o essencial» ou «Querida Mãe. Como Deus não podia estar em todo o lado criou as mães» faz parte "daquilo" que poderia designar-se como Bibliografia Portuguesa para Chorar, o que é muito diferente das razões que levam as pessoas a chorar com os filmes.
Uma pessoa pode escrever e falar sobre os assuntos que entender e encontrará também, para isso, a legitimidade que lhe for mais adequada. O que nos resta da democracia, por enquanto, ainda permite essa liberdade, se bem que «essa liberdade», no contexto da edição de livros de História ou da desventurada Sociologia, represente um problema dentro do problema. A questão aqui não me parece ser essa, nem a questão da liberdade é colocada na formulação do post. Uma pessoa não precisa de morrer para escrever sobre a morte porque se estiver consciente de si essa será a sua primeira questão. Mas o problema da morte foi substituído por outros problemas substitutivos e anódinos, e entre eles o do consumo. Uma pessoa também não precisa necessariamente de passar fome para escrever sobre a fome, mas se tiver a carteira vazia e precisar de pão e azeite, o seu pensamento sobre o sofrimento dos outros será com certeza diferente. Todavia, não precisa de se sujeitar a isso. Parece-me que se pode escrever sobre os assuntos que se entender porque o resultado dessa escrita revelará sempre a verdade da qualidade da aproximação ao assunto. Creio que a tudo isto responde a constatação de a «verdade-verdade» não ser possível em História. Mas não é por causa dessa impossibilidade que se desiste de escrever a História. E a capa do livro, de facto, é reveladora: se, pela primeira vez em muitos anos a fotografia da Autora não aparece na capa, porque isso seria uma falta inconcebível de pudor, aparece o seu fantasma ainda mais verdadeiro do que a fotografia. É a questão básica do retrato e da máscara. O fantasma verdadeiro que está na capa é este: «Nunca passei fome. Os meus filhos nunca passaram fome. Os meus netos nunca passaram fome. Mas, em Portugal, ainda há gente que sofre por não ter de comer. São eles que me levaram a escrever este livro.» Mas é provável que qualquer autor, se tivesse alguma vez na vida passado fome a valer, daquela que cola o estômago às costas (escrevo isto mas não sei o que isso é), ou tivesse filhos e netos a não conseguirem dormir com o choro da fome (e também não sei o que isto é), talvez nunca conseguisse escrever um livro sobre a fome, a não ser que fosse um grande escritor e tivesse um domínio invulgar das palavras e dos respectivos conceitos e conseguisse fazer da ficção literária aquilo que ela é: a verdade. Até porque é preciso saber o que significa a palavra fome em 1800, em 1900 ou em 2016, e de que tipo de arbitrariedade provém. Não li o livro e não posso falar do seu conteúdo, folheei-o, não é o suficiente. (Segue no comentário seguinte porque a maquinaria tem um limite de caracteres, descobri agora.)
Do que falo é da capa. O que me parece é que a Autora, ou o editor, não sabemos, prescindiu do retrato e colocou o fantasma ainda mais verdadeiro do que o retrato, com uma fotografia que talvez se possa datar de meados ou do último terço dos anos Setenta. Aliás, o livro é sobre os pobres tal como a Autora os descobriu aos 16 anos, porque a demais bibliografia sobre a pobreza é apresentada pela sinopse da editora como «certamente interessante». Tudo isto vai ser embrulhado em papel colorido de Natal. A questão fundamental da pobreza não é nem nunca foi uma questão de piedade, porque a piedade para o que serve é para a justificar e lhe dar uma funcionalidade, uma razão para o trinfo da moral vigente completamente amoral do capitalismo neoliberal. A questão fundamental da pobreza, em termos intelectuais, é incompatível com a distância porque a essência da escrita é a resistência, e é precisamente por isso, creio, que ela ascende à qualidade de acto criativo, que é aquele que não explica mas interroga, para além e contra as circunstâncias do tempo. E no meu entender, nada disto é incompatível com a escrita da História (porque a Sociologia é outra «conversa») porque um Historiador que o seja, consequentemente, suporta o paradoxo que tudo isto envolve: utilizar a linguagem do seu tempo para escrever sobre uma linguagem que lhe é completamente estranha; mas um historiador tem que ser capaz disso. E quem não sabe pergunta, vai aprendendo: mete mãos ao trabalho e aproxima-se da Filologia, da Literatura, da Poesia. Falar pressupõe, creio, utilizar conceitos.
Escrevi as linhas acima, ontem, 18, e por serem extensas acabei por decidir não as colocar no comentário a esta publicação. Hoje passei pela livraria – não ia com essa intenção mas vi o livro – e folheei «A Fome» com um pouco mais de atenção, aquela que os comprimidos para a tensão arterial consentem. Pois o livro de Maria Filomena Mónica não é sobre a fome porque sobre esse assunto suponho que a Autora não conseguiria escrever uma linha. A sua autobiografia, «Bilhete de Identidade», é clara a esse respeito. O livro «A Fome» é uma “história” da Pobreza e do sistema que a consente porque é mais o que dela lucra do que a situação em que ficaria se fizesse um esforço aceitável no sentido de a erradicar. É pois, também, uma história dos significados da palavra «esmola» à sombra das igrejas, dos grupos dirigentes, da burguesia que disputou o poder à nobreza, saindo vitoriosa, e lava a sua consciência com o pobre da sua eleição. Que deve continuar pobre e sem instrução. Portanto, o livro não é sobre a fome. Venderá mais se tiver escrito na capa a palavra «fome» mas só arrecadará dinheiro do bolso dos incautos ou daqueles que apreciam qualquer tipo de proximidade com as celebridades, incluindo comprar os seus livros e correr a obter a atenção da sua assinatura na sessão de autógrafos. «Em Agosto [de 1974] fechei-me na Biblioteca Nacional», diz a Autora, a certa altura, a propósito da manifestação da Maioria Silenciosa. Não se fechou porque a Biblioteca Nacional tem horário de funcionamento ao público. Não sei se me faço entender. «A Fome» é um livro que deve ser lido com outro livro da Autora ao lado, «Bilhete de Identidade», «certamente interessante».
13 comentários:
Questões: apenas quem já tenha passado fome pode escrever sobre esta? Não poderá um escritor vivo - e portanto que nunca tenha morrido - escrever um livro sobre a morte?
Acredito que alguém que já tenha vivenciado determinada experiência tenha um conhecimento acrescido sobre esta, no entanto, parece-me possível alguém ser capaz de dissertar sobre algo pelo qual nunca passou (com base, por exemplo, na observação ou na informação já existente).
Permita-me que realize estas singelas conjecturas, aproveitando para informa-lo que sou um verdadeiro apreciador das suas reflexões.
Só se pode escrever sobre os pobres se se for muito pobrezinho?
FPS e Anónimo, é óbvio que não. Subentenderam isso nas minhas palavras? Não era essa a intenção. Talvez o post devesse ser acompanhado da capa do livro, mas não quis abusar na publicidade.
Este ano morreu Alfredo Bruto da Costa. Não sei se algum dia foi pobre, se passou fome, mas reconhecia-lhe autoridade para falar sobre pobreza. À Maria Filomena Mónica reconheço tanta autoridade para falar sobre o tema como à Isabel Jonet.
É, portanto, uma questão de preconceito.
Então, nos tempos da outra senhora, as famílias "tinham os seus pobrezinhos". Talvez a MFM tenha herdado alguns!!
(Acho que estás a ser mauzinho. Os pobres são de todos)
Claro, Cuca. Todos os ricos têm direito aos seus pobres.
Sim, anónimo.
Sebastião Salgado, talvez uma das pessoas no século XX e XXI melhor documentou a pobreza e a exploração dos homens por outros homens (há sempre ligação entre as duas), provavelmente também nunca passou fome (doutorou-se em economia, é latifundiário...).
Eu só passei fome nas dietas que fiz que foram muitas, poderia escrever um livro sobre distúrbios alimentares. :)
«Os Pobres», assim como «Joga-se aqui o essencial» ou «Querida Mãe. Como Deus não podia estar em todo o lado criou as mães» faz parte "daquilo" que poderia designar-se como Bibliografia Portuguesa para Chorar, o que é muito diferente das razões que levam as pessoas a chorar com os filmes.
... escrevi mal, deve ser: que levam as pessoas a chorarem com os filmes.
Xilre, o Fidel também era de boas famílias. :-)
MJLF, seria certamente um livro interessante. :-)
Jorge, lá na chafarica damos o nome de "tadinhices" a esses livros. :-)
Uma pessoa pode escrever e falar sobre os assuntos que entender e encontrará também, para isso, a legitimidade que lhe for mais adequada. O que nos resta da democracia, por enquanto, ainda permite essa liberdade, se bem que «essa liberdade», no contexto da edição de livros de História ou da desventurada Sociologia, represente um problema dentro do problema. A questão aqui não me parece ser essa, nem a questão da liberdade é colocada na formulação do post. Uma pessoa não precisa de morrer para escrever sobre a morte porque se estiver consciente de si essa será a sua primeira questão. Mas o problema da morte foi substituído por outros problemas substitutivos e anódinos, e entre eles o do consumo. Uma pessoa também não precisa necessariamente de passar fome para escrever sobre a fome, mas se tiver a carteira vazia e precisar de pão e azeite, o seu pensamento sobre o sofrimento dos outros será com certeza diferente. Todavia, não precisa de se sujeitar a isso. Parece-me que se pode escrever sobre os assuntos que se entender porque o resultado dessa escrita revelará sempre a verdade da qualidade da aproximação ao assunto. Creio que a tudo isto responde a constatação de a «verdade-verdade» não ser possível em História. Mas não é por causa dessa impossibilidade que se desiste de escrever a História. E a capa do livro, de facto, é reveladora: se, pela primeira vez em muitos anos a fotografia da Autora não aparece na capa, porque isso seria uma falta inconcebível de pudor, aparece o seu fantasma ainda mais verdadeiro do que a fotografia. É a questão básica do retrato e da máscara. O fantasma verdadeiro que está na capa é este: «Nunca passei fome. Os meus filhos nunca passaram fome. Os meus netos nunca passaram fome. Mas, em Portugal, ainda há gente que sofre por não ter de comer. São eles que me levaram a escrever este livro.» Mas é provável que qualquer autor, se tivesse alguma vez na vida passado fome a valer, daquela que cola o estômago às costas (escrevo isto mas não sei o que isso é), ou tivesse filhos e netos a não conseguirem dormir com o choro da fome (e também não sei o que isto é), talvez nunca conseguisse escrever um livro sobre a fome, a não ser que fosse um grande escritor e tivesse um domínio invulgar das palavras e dos respectivos conceitos e conseguisse fazer da ficção literária aquilo que ela é: a verdade. Até porque é preciso saber o que significa a palavra fome em 1800, em 1900 ou em 2016, e de que tipo de arbitrariedade provém. Não li o livro e não posso falar do seu conteúdo, folheei-o, não é o suficiente. (Segue no comentário seguinte porque a maquinaria tem um limite de caracteres, descobri agora.)
Do que falo é da capa. O que me parece é que a Autora, ou o editor, não sabemos, prescindiu do retrato e colocou o fantasma ainda mais verdadeiro do que o retrato, com uma fotografia que talvez se possa datar de meados ou do último terço dos anos Setenta. Aliás, o livro é sobre os pobres tal como a Autora os descobriu aos 16 anos, porque a demais bibliografia sobre a pobreza é apresentada pela sinopse da editora como «certamente interessante». Tudo isto vai ser embrulhado em papel colorido de Natal. A questão fundamental da pobreza não é nem nunca foi uma questão de piedade, porque a piedade para o que serve é para a justificar e lhe dar uma funcionalidade, uma razão para o trinfo da moral vigente completamente amoral do capitalismo neoliberal. A questão fundamental da pobreza, em termos intelectuais, é incompatível com a distância porque a essência da escrita é a resistência, e é precisamente por isso, creio, que ela ascende à qualidade de acto criativo, que é aquele que não explica mas interroga, para além e contra as circunstâncias do tempo. E no meu entender, nada disto é incompatível com a escrita da História (porque a Sociologia é outra «conversa») porque um Historiador que o seja, consequentemente, suporta o paradoxo que tudo isto envolve: utilizar a linguagem do seu tempo para escrever sobre uma linguagem que lhe é completamente estranha; mas um historiador tem que ser capaz disso. E quem não sabe pergunta, vai aprendendo: mete mãos ao trabalho e aproxima-se da Filologia, da Literatura, da Poesia. Falar pressupõe, creio, utilizar conceitos.
Escrevi as linhas acima, ontem, 18, e por serem extensas acabei por decidir não as colocar no comentário a esta publicação. Hoje passei pela livraria – não ia com essa intenção mas vi o livro – e folheei «A Fome» com um pouco mais de atenção, aquela que os comprimidos para a tensão arterial consentem. Pois o livro de Maria Filomena Mónica não é sobre a fome porque sobre esse assunto suponho que a Autora não conseguiria escrever uma linha. A sua autobiografia, «Bilhete de Identidade», é clara a esse respeito. O livro «A Fome» é uma “história” da Pobreza e do sistema que a consente porque é mais o que dela lucra do que a situação em que ficaria se fizesse um esforço aceitável no sentido de a erradicar. É pois, também, uma história dos significados da palavra «esmola» à sombra das igrejas, dos grupos dirigentes, da burguesia que disputou o poder à nobreza, saindo vitoriosa, e lava a sua consciência com o pobre da sua eleição. Que deve continuar pobre e sem instrução. Portanto, o livro não é sobre a fome. Venderá mais se tiver escrito na capa a palavra «fome» mas só arrecadará dinheiro do bolso dos incautos ou daqueles que apreciam qualquer tipo de proximidade com as celebridades, incluindo comprar os seus livros e correr a obter a atenção da sua assinatura na sessão de autógrafos. «Em Agosto [de 1974] fechei-me na Biblioteca Nacional», diz a Autora, a certa altura, a propósito da manifestação da Maioria Silenciosa. Não se fechou porque a Biblioteca Nacional tem horário de funcionamento ao público. Não sei se me faço entender. «A Fome» é um livro que deve ser lido com outro livro da Autora ao lado, «Bilhete de Identidade», «certamente interessante».
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