De quando em quando, alguém no mundo se encarrega de
desenterrar pérolas. Seguindo sábios conselhos, não as lança aos porcos.
Coloca-as à disposição. Os leitores que lhes lancem as mãos. Faz agora três
anos, uma parceria Alexandria/Língua Morta permitiu recuperar a poesia de
Manuel de Castro (n. 1934 – m. 1971). Este ano, a Abysmo lembrou-se de José
Manuel Simões (n. 1934 – m. 1999). Entre ambos, descobrimos uma ligação que não
se reduz ao mesmo ano de nascimento. Transcende o dado irrelevante com uma
cumplicidade patenteada nas páginas de Sobras Completas (Abysmo, Outubro de 2016),
nomeadamente quando, no primeiro de dois prefácios, Helder Macedo os coloca à
conversa citando correspondência com mais de 50 anos. Na verdade, ambos os
autores integraram aquele que ficou conhecido como o “grupo do café Gelo”. A
informalidade do agregado presta-se a equívocos, embora seja de assinalar que
por lá, no rastro do surrealismo português, passaram poetas tais como Herberto
Helder e António José Forte.
O desconhecido José Manuel Simões zarpou para Paris no
final da década de 1950, aí se fixando e «vivendo precariamente de traduções».
No prefácio, Helder Macedo conta que recebeu dele, num envelope castanho, com o
título escrito à mão no rosto do envelope, estas Sobras Completas. Em suma, um
conjunto de poemas escritos, na sua maioria, nesses idos de 1950 e 1960: «São
portanto, juvenilia, textos escritos entre os dezanove e os vinte e tal anos,
com óbvias influências e convergências literárias (Drummond, Borges, algum
Cesariny) mas também manifestando uma voz poética muito pessoal de expectativa
sem esperança e de auto-ironia nostálgica» (p. 9). Poderíamos ficar por aqui,
não fosse o caso destas sobras terem mexido connosco como poucas obras e pratos
principais logram mexer.
Num volume graficamente irrepreensível, as diferentes
secções deste pequeno livro (115 páginas) resgatam-nos, também pela brevidade
de cada uma delas, para o que há de fundamental na poesia. Respeitando o
próprio autor, sublinharemos, pois, a auto-ironia, se bem que esta se processe
para lá de um humorismo que pode levar-nos a confundir desafectação com indolência, relativismo com laxismo, uma profunda consciência das tragédias
humanas com apatia. Em matéria de produção artística, aquele que não se leve a
sério não é necessariamente histrião. Desimportantizar é o verbo. Ainda que brincar e criar possam se
interligar, à criação acrescenta-se algo mais. Talvez a consciência do valor
que um testemunho carrega. Ora, se as Sobras Completas chegaram até nós não terá
sido porque em todos os implicados para que tal fosse possível havia apenas uma
vontade de... brincar.
Notemos como no próprio divertimento que José Manuel
Simões possa ter almejado com os seus versos existe, implícita ou
explicitamente, a expressão de um humor que, fintando as armadilhas da gravidade,
acaba ele próprio por nos armadilhar o sentido lúdico das palavras. Como?
Provocando-nos com a imagem recorrente de um isolamento, de uma solidão, de um
exílio íntimo que não aquieta emoções nem permite que o alheamento reine sobre as
palavras. O espírito dos homens livres é assim, na sua ligeireza calcorreia
mundos carregado de uma provocadora solidão. A solidão é um fardo oneroso, o preço a pagar por um espírito livre. Chamar sobras a uma obra, por mais
curta e breve que seja, é já de si uma provocação. Inteligente provocação que
nos deixa na expectativa, a qual inflecte num sentido inverso ao do riso quando
nos deparamos com o título do principal conjunto de poemas aqui reunidos: O Mar
Ausente.
Mais ou menos experimentais, adoptando/subvertendo esquemas
rímicos diversos ou em verso livre, mas sempre cuidadosamente cadenciado, por vezes em prosa, os
poemas de José Manuel Simões denotam uma independência criativa
e uma autonomia existencial absolutas. O amor e a solidão são temas recorrentes,
quase como pólos de uma poesia capaz de se questionar em tão enigmática quão
irónica condição — «Quem é que te conhece, amor, / amor que eu não sei quem
és?» (p. 50) —, para logo de seguida, num outro poema, responder com a
derradeira solução que o problema merece: «Invento-te, invento-nos. / Ponho
nisso o cuidado / com que é costume observarem-se / as entranhas dos vermes e
as evoluções / dos discos voadores. // Mas é preciso, amor, que compreendas / a
minha e a tua solidão. // É preciso que saibas / adivinhar o tempo das lágrimas
/ e fugir antes que te alcance» (p. 51).
Aos seus poemas, juntou o A. versões para poemas de e.e. cummings, Hart Crane, Kenneth Fearing. Convenhamos que num país de "tantos e tão geniais" poetas é sempre
uma agradável surpresa descobrir quem olhe o mundo em linha recta,
distanciando-se, como convém, dos «sensatos cordeirinhos bíblicos» a quem o dom
da poesia foi outorgado por convenção iniciática. Ora, no segundo dos dois
prefácios, assevera José de Sá Caetano em missiva dirigida a Helder Macedo que
foram feitas tentativas, sem sucesso, no sentido de publicar as Sobras
Completas. Quis a ordem natural das coisas que caíssem no Abysmo, para bem de
todos quantos ficam agradecidos por não caírem no “vasio” poemas como aquele
que passamos a citar:
AS MÃOS OFERECIDAS
São as alavancas do inconsciente
que empurram a máquina de fazer versos.
Quando a vida me tornar
num bloco só de gelo ou ferro ao rubro
eu poderei dizer que construo minhas
todas as esperanças de água,
todas as fomes de pão,
todas as antigas necessidades de amor.
Poderei distribuir por todos o amor que em mim sobeja
por não ter terra onde pousar.
Poderei dar como o Cristo
o meu sangue a beber
e o meu corpo a comer
e no entanto ficar inteiro
para a renovação motriz a acabar
em total preparação dos pastos.
Nessa altura, quando a terra
for maior e verdes os nossos olhos,
eu terei rios nos braços
para molhar de azul a terra fecundada
e os homens vermelhos, iguais, então,
aos homens brancos e negros e amarelos
que trago sempre comigo, bem guardados,
no bolso onde um revólver os oculta.
De todos os lados virá para mim
o som dos cabelos loiros
e o cheiro dos corpos jovens.
De toda a parte os mergulhadores
me trarão peixes doirados, corpos
de bronze e mel, cravos roxos para o meu amor,
e porão a flutuar
o claro fundo dos sonhos do homem.
Em todos os lugares os homens
se darão as mãos em cadeias longas
e eu estarei sozinho no meio deles.
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