sábado, 17 de dezembro de 2016

SOBRAS COMPLETAS

De quando em quando, alguém no mundo se encarrega de desenterrar pérolas. Seguindo sábios conselhos, não as lança aos porcos. Coloca-as à disposição. Os leitores que lhes lancem as mãos. Faz agora três anos, uma parceria Alexandria/Língua Morta permitiu recuperar a poesia de Manuel de Castro (n. 1934 – m. 1971). Este ano, a Abysmo lembrou-se de José Manuel Simões (n. 1934 – m. 1999). Entre ambos, descobrimos uma ligação que não se reduz ao mesmo ano de nascimento. Transcende o dado irrelevante com uma cumplicidade patenteada nas páginas de Sobras Completas (Abysmo, Outubro de 2016), nomeadamente quando, no primeiro de dois prefácios, Helder Macedo os coloca à conversa citando correspondência com mais de 50 anos. Na verdade, ambos os autores integraram aquele que ficou conhecido como o “grupo do café Gelo”. A informalidade do agregado presta-se a equívocos, embora seja de assinalar que por lá, no rastro do surrealismo português, passaram poetas tais como Herberto Helder e António José Forte.
O desconhecido José Manuel Simões zarpou para Paris no final da década de 1950, aí se fixando e «vivendo precariamente de traduções». No prefácio, Helder Macedo conta que recebeu dele, num envelope castanho, com o título escrito à mão no rosto do envelope, estas Sobras Completas. Em suma, um conjunto de poemas escritos, na sua maioria, nesses idos de 1950 e 1960: «São portanto, juvenilia, textos escritos entre os dezanove e os vinte e tal anos, com óbvias influências e convergências literárias (Drummond, Borges, algum Cesariny) mas também manifestando uma voz poética muito pessoal de expectativa sem esperança e de auto-ironia nostálgica» (p. 9). Poderíamos ficar por aqui, não fosse o caso destas sobras terem mexido connosco como poucas obras e pratos principais logram mexer.
Num volume graficamente irrepreensível, as diferentes secções deste pequeno livro (115 páginas) resgatam-nos, também pela brevidade de cada uma delas, para o que há de fundamental na poesia. Respeitando o próprio autor, sublinharemos, pois, a auto-ironia, se bem que esta se processe para lá de um humorismo que pode levar-nos a confundir desafectação com indolência, relativismo com laxismo, uma profunda consciência das tragédias humanas com apatia. Em matéria de produção artística, aquele que não se leve a sério não é necessariamente histrião. Desimportantizar é o verbo. Ainda que brincar e criar possam se interligar, à criação acrescenta-se algo mais. Talvez a consciência do valor que um testemunho carrega. Ora, se as Sobras Completas chegaram até nós não terá sido porque em todos os implicados para que tal fosse possível havia apenas uma vontade de... brincar.
Notemos como no próprio divertimento que José Manuel Simões possa ter almejado com os seus versos existe, implícita ou explicitamente, a expressão de um humor que, fintando as armadilhas da gravidade, acaba ele próprio por nos armadilhar o sentido lúdico das palavras. Como? Provocando-nos com a imagem recorrente de um isolamento, de uma solidão, de um exílio íntimo que não aquieta emoções nem permite que o alheamento reine sobre as palavras. O espírito dos homens livres é assim, na sua ligeireza calcorreia mundos carregado de uma provocadora solidão. A solidão é um fardo oneroso, o preço a pagar por um espírito livre.  Chamar sobras a uma obra, por mais curta e breve que seja, é já de si uma provocação. Inteligente provocação que nos deixa na expectativa, a qual inflecte num sentido inverso ao do riso quando nos deparamos com o título do principal conjunto de poemas aqui reunidos: O Mar Ausente.
Mais ou menos experimentais, adoptando/subvertendo esquemas rímicos diversos ou em verso livre, mas sempre cuidadosamente cadenciado, por vezes em prosa, os poemas de José Manuel Simões denotam uma independência criativa e uma autonomia existencial absolutas. O amor e a solidão são temas recorrentes, quase como pólos de uma poesia capaz de se questionar em tão enigmática quão irónica condição — «Quem é que te conhece, amor, / amor que eu não sei quem és?» (p. 50) —, para logo de seguida, num outro poema, responder com a derradeira solução que o problema merece: «Invento-te, invento-nos. / Ponho nisso o cuidado / com que é costume observarem-se / as entranhas dos vermes e as evoluções / dos discos voadores. // Mas é preciso, amor, que compreendas / a minha e a tua solidão. // É preciso que saibas / adivinhar o tempo das lágrimas / e fugir antes que te alcance» (p. 51).
Aos seus poemas, juntou o A. versões para poemas de e.e. cummings, Hart Crane, Kenneth Fearing. Convenhamos que num país de "tantos e tão geniais" poetas é sempre uma agradável surpresa descobrir quem olhe o mundo em linha recta, distanciando-se, como convém, dos «sensatos cordeirinhos bíblicos» a quem o dom da poesia foi outorgado por convenção iniciática. Ora, no segundo dos dois prefácios, assevera José de Sá Caetano em missiva dirigida a Helder Macedo que foram feitas tentativas, sem sucesso, no sentido de publicar as Sobras Completas. Quis a ordem natural das coisas que caíssem no Abysmo, para bem de todos quantos ficam agradecidos por não caírem no “vasio” poemas como aquele que passamos a citar:

AS MÃOS OFERECIDAS

São as alavancas do inconsciente
que empurram a máquina de fazer versos.
Quando a vida me tornar
num bloco só de gelo ou ferro ao rubro
eu poderei dizer que construo minhas
todas as esperanças de água,
todas as fomes de pão,
todas as antigas necessidades de amor.
Poderei distribuir por todos o amor que em mim sobeja
por não ter terra onde pousar.
Poderei dar como o Cristo
o meu sangue a beber
e o meu corpo a comer
e no entanto ficar inteiro
para a renovação motriz a acabar
em total preparação dos pastos.

Nessa altura, quando a terra
for maior e verdes os nossos olhos,
eu terei rios nos braços
para molhar de azul a terra fecundada
e os homens vermelhos, iguais, então,
aos homens brancos e negros e amarelos
que trago sempre comigo, bem guardados,
no bolso onde um revólver os oculta.
De todos os lados virá para mim
o som dos cabelos loiros
e o cheiro dos corpos jovens.
De toda a parte os mergulhadores
me trarão peixes doirados, corpos
de bronze e mel, cravos roxos para o meu amor,
e porão a flutuar
o claro fundo dos sonhos do homem.

Em todos os lugares os homens
se darão as mãos em cadeias longas
e eu estarei sozinho no meio deles. 

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