Repetem-se os tradicionais balanços de fim de ano, numa
monotonia sem graça que tende a olhar para a realidade sem lhe questionar as
lógicas de produção/consumo. No caso dos livros, a sensaboria é-me ainda mais
evidente. Trabalho rodeado desses objectos mitificados e mistificadores. Uma
análise ao ano que passou apenas permite reforçar a ideia de um total
alheamento do crítico face ao público. Assim sendo, num esforço redobrado de
diferenciação do objecto, volto a lançar-me nesta ingrata tarefa de olhar para
o livro através das suas componentes. Como quem desenha uma paisagem. Na lista
que se segue, não aparecem todos os livros que li durante o ano que passou.
Estão livros que ainda não li na íntegra. Até está um que não conto vir a ler.
Não está o melhor livro de ficção que li este ano, o livro de contos da Lucia
Berlin. Mas estão muitos livros que me acompanharam e sobre os quais fui escrevendo
neste espaço de partilha, novamente chamados à liça por aspectos que nem serão
dos mais relevantes. Ou são e a gente não se apercebe. Assim sendo,
Melhor cinta
Sofi Oksanen, “Norma”, Alfaguara, Outubro de 2016
Boa solução para a mais inútil das componentes de um livro. Num mundo perfeito, as cintas desapareceriam e ninguém daria pela falta. Raramente não prejudicam aquilo à volta do qual se encontram como plantas trepadeiras. Neste caso, nota-se o esforço para respeitar a bela imagem de capa.
Melhor sobrecapa
Carlos Ruiz Zafón, “O Jogo do Anjo”, Planeta, Agosto de
2016
Nunca li, nem está nos meus planos vir a ler, Carlos Ruiz Zafón. Não pude, no entanto, deixar de reparar nas reedições portuguesas dos seus livros pela Planeta. Dizem-me que não é inédito, mas gostei da sobrecapa plástica em diálogo com a capa rija. Uma imagem de fundo a preto e branco sobre a qual incidem nome do autor, título da obra, figura humana e logótipo do editor.
Melhor primeira orelha/badana
Bruce Springsteen, “Born To Run”, Elsinore, Setembro de
2016
Consta que foi o artista que mais facturou durante 2016, contribuindo para o resultado a edição mundial de uma inteligente autobiografia. Ao contrário do que tantas vezes sucede, a edição portuguesa respeitou o layout original evitando poluir a primeira badana com informações desnecessárias. Querem saber mais sobre Springsteen? Leiam o livro ou vão ao sítio do autor.
Melhor guarda
Tiago Pereira, “O Povo Que Ainda Canta”, Tradisom, Julho
de 2016
Melhor folha de guarda
Os livros da Elsinore
Os livros da editora Elsinore têm esta particularidade de mesmo quando são maus, merecerem pelo menos uma visita à folha de guarda. É que todos eles aí reproduzem um dos grandes poemas de Mário Cesariny, ameaçando tornar "You Are Welcome To Elsinore" no poema mais imprensado do mundo. Não sei se é uma boa ou má solução, embora seja sempre agradável reler Cesariny.
Melhor folha de rosto
Alfred Jarry, “Messalina”, Sistema Solar, Janeiro de 2016
Persistindo na reedição de malditos clássicos malditos, a Sistema Solar tem muitas das melhores folhas de rosto alguma vez publicadas neste país. Porquê? Porque aí consta amiúde o nome de Aníbal Fernandes, cujas traduções e introduções são, sem excepção, impagáveis exemplos de amor à palavra escrita.
Melhor capa
Daniel Jonas, “Bisonte”, Assírio & Alvim, Abril de
2016
A quem me pergunte qual foi o melhor livro de poesia portuguesa contemporânea que li em 2016, eu terei de responder "Bisonte". Talvez me arrisque a ser mal interpretado, entendendo a pessoa a quem eu ofereça tal resposta que lhe estou a chamar um nome ofensivo. Mal entendido que seria facilmente desfeito, bastando para tal olhar com atenção a capa deste livro, passando os dedos pelo relevo do título, pressentindo na estranheza um inesperado hino à natureza selvagem. Também a da poesia.
Melhor dobra
Paulo José Miranda, “Auto-Retratos”, Abysmo, s/d.
Inteligente desconstrução do livro enquanto objecto, "Auto-Retratos" de Paulo José Miranda é o pesadelo dos livreiros convencionais. Merece ser lembrado pela excepção gráfica, mas também pelo jogo estabelecido entre essa excepção e o conteúdo dos poemas. Retratos que se definem pela perturbadora relação que a palavra estabelece entre autor e leitor.
Melhor segunda orelha
Raduan Nassar, “Lavoura Arcaica”, Companhia das Letras,
Setembro de 2016
Inesperado Prémio Camões, Raduan Nassar tem apenas três livros publicados. Um romance, uma novela e um volume de contos foi quanto lhe bastou para se afirmar como um dos mais relevantes autores da língua portuguesa. Na edição da Companhia das Letras, metade da segunda badana é destacável e converte-se em marcador de páginas. Pormenor gráfico deveras inteligente.
Melhor contracapa
Henry David Thoreau, “Maçãs Silvestres & Cores de
Outono”, Antígona, Junho de 2016
É a escolha do texto que torna as contracapas da Antígona tão especiais. Ignorando recortes de imprensa e elogios a granel, vai directamente ao autor respigar uma citação reveladora do contexto da obra em causa. Cada citação é um testemunho, uma espécie de axioma, um grafito, é um aforismo com a força de sentença moral. Clique na imagem para ver melhor.
Melhor lombada
Ruy Cinatti, “Obra Poética – volume I”, Assírio &
Alvim, Outubro de 2016
A mais aguardada das lombadas chegou em 2016. Só para poder ter este volume por perto, já valeu a pena o esforço de estar vivo. Ruy Cinatti é um dos mais relevantes poetas portugueses de sempre. Este volume, que nos há-de fazer muita companhia nos próximos tempos, é o primeiro de uma vastíssima obra. Não são folhas em papel de Bíblia, são folhas bíblicas.
Melhor formato
Colecção Gato Maltês
Kabir, “O Nome Daquele Que Não Tem Nome, Assírio &
Alvim, Março de 2016
Contrastando com "o tijolo" anterior, os livros da colecção Gato Maltês têm aquele formato de levar para qualquer lado. Este, traduzido por Jorge Sousa Braga, é dos melhores em verso internacional por cá publicados no ano de 2016. Num ano em que os extremos foram ainda mais extremados, adquirindo força o discurso da separação contra o da integração, ler Kabir foi o banho espiritual possível a um ateu irrecuperável.
Melhor impressão
José Manuel Simões, “Sobras Completas, Abysmo, Outubro de
2016
Há neste livro a força de um gesto amigável que a capa, em cartolina grossa, de certo modo reproduz. Nela recupera-se a grafia de um autor esquecido, replica-se o envelope onde ficaram guardadas as palavras derradeiras da testemunha de um tempo que nos deu grandes escritores no exílio. O editor fala em resgatar do esquecimento, fazendo também disso missão em papel e tinta ao dispor de todos quantos tenham interesse.
Melhor tradução
Eimear McBride, “Uma Rapariga é Uma Coisa Inacabada”, tradução
de Daniel Jonas, Elsinore, Março de 2016
Bis para Daniel Jonas. Ainda não li "Breve História de Sete Assassinatos", com tradução de José Miguel Silva, que me dizem ser um excelente trabalho, mas a tradução para o exigente romance de estreia da irlandesa Eimear McBride é, sem margem para dúvidas, um esforço pelo qual lhe devemos todos ficar agradecidos enquanto leitores.
Melhor miolo
Filipe Melo & Juan Cavia, “Os Vampiros”, Tinta da
China, Junho de 2016
Só folheando e sentindo o cheiro. Um regalo para os olhos que chega a todos os sentidos. Os desenhos de Juan Cavia para o argumento de Filipe Melo, surpreendente incursão pela guerra colonial portuguesa, são uma portentosa interpretação dos cenários de guerra e das relações humanas neles estabelecidas. O leitor é capturado para o interior das páginas como se estivesse a assistir a um filme. E está.
Melhores agradecimentos
Megan Bradbury, “Onde Todos Observam”, Elsinore, Julho de
2016
Num livro cuja personagem principal é uma cidade, Megan Bradbury não se contém na excitação dos agradecimentos. A frase dedicada a Don DeLillo é algo enigmática, restando-nos a incerteza de como seria a escritora antes de ter lido DeLillo. São várias páginas de agradecimentos com inúmeros destinatários. Subitamente, ocorre-me a possibilidade de todo um livro poder ser assim. Um agradecimento.
Melhor posfácio
Margarida Vale de Gato, “Lançamento”, Douda Correria,
Outubro de 2016
Melhor dedicatória
Miguel Cardoso, “Víveres”, Tinta da China, Julho de 2016
Num livro marcado por privações, as ruas e as pessoas dessas ruas onde o poema surge e ganha forma são maná para os dias. Mas sobretudo a dedicatória final: «Ao Xavier, onde moro.» Nem é preciso que saibamos quem é o Xavier, a dedicatória é, em si mesma, um dos mais belos poemas de um livro que também se chama vida.
Melhor epígrafe
Mariano Alejandro Ribeiro, “Antes da Iluminação”,
Mariposa Azual, Abril de 2016
Um provérbio Zen fica sempre bem, mesmo não tendo nós a certeza de que se trate de um provérbio ou que seja, de facto, Zen. A verdade é que estas duas linhas definem na sua cruel simplicidade a relação que temos com a luz e como, ao longo da vida, o ritual se vai sobrepondo à contemplação. Não nego que uma coisa leve à outra, apenas reafirmo que entre o pragmatismo dos afazeres e o instante da contemplação se instaurou um vazio. E esse é bem mais niilista do que Zen.
Melhor sumário
Nuno Moura, “Clube dos Haxixins”, Douda Correria, Outubro
de 2016
Desconfio que seja mesmo feitio. Nuno Moura gosta de subverter, de fazer ao contrário. Por isso deixa os sumários para o fim e dá-lhes o nome de Nota Prévia, reforçando mais ainda essa tendência intratável para a desconstrução. Sublinhe-se, igualmente, a honestidade do discurso quando a memória falha.
Karl Marx, “Do Suicídio”, Antígona, Junho de 2016
Não é um nem dois, são três os prefácios guardados para a edição portuguesa de "Do Suicídio", obra atribuída a Karl Marx que não é exactamente de Karl Marx. O primeiro dos prefácios intitula-se "Um Texto Insólito de Marx", e foi assinado por Michael Löwy. Breve, curto, mas incisivo ensaio que acaba por extravasar os trâmites da obra em análise.
Melhores notas de rodapé
Matsu Bashô, "O Eremita Viajante [haikus – obra completa]",
organização e versão portuguesa de Joaquim M. Palma, Assírio & Alvim,
Setembro de 2016
Imaginem um livro em que o leitor se deliciasse tanto a ler notas de rodapé como o conteúdo do próprio livro. É isso que sucede na reunião integral dos haikus de Bashô, muito por culpa de Joaquim M. Palma. As notas sobre os poemas não são apenas informações que esclarecem os poemas, são, muitas vezes, elas próprias um poema sob a forma de nota, na medida em que exploram possibilidades de interpretação inacessíveis ao leitor comum.
Melhor cólofon
José Luís Costa, “Canto da Alforreca”, Douda Correria,
Janeiro de 2016
Palavras para quê? É um poema visual.
Melhor colecção
Obras de José Martins Garcia, Companhia das Ilhas
Por razões que alguém conseguirá explicar, o esforço de uma pequena editora na recuperação de mais um escritor esquecido mereceu apenas, aqui e acolá, tímidos apontamentos. Estaremos atentos à continuação desta relevante colecção, certos de que o nome de José Martins Garcia merece uma atenção que ainda não lhe foi dedicada.
Melhor bibliografia
Mafalda Ivo Cruz, “Pequena Europa”, Mariposa Azual, Dezembro
de 2016
Começa a ser bastante frequente encontrarmos obras de ficção com referências bibliográficas. Ainda que pareça natural em romances históricos, ou próximos desse registo, parece-o menos quando a dimensão narrativa surge estilhaçada por uma intenção experimental que resiste à linearidade dos tempos. As referências declaradas por Mafalda Ivo Cruz apelam à leitura. Em breve, conto dedicar algumas linhas a este romance.
Melhor título
Nuno Costa Santos, “Céu Nublado com Boas Abertas”,
Quetzal, Fevereiro de 2016
A dificuldade de um bom título é semelhante à angústia do guarda-redes no momento do penálti. Peter Handke foi feliz ao percebê-lo, Nuno Costa Santos também ao fintar essa angústia com a mais evidente das soluções. Que outro título para um romance com os Açores em plano de fundo?
Melhor ilustração de capa (e de contracapa)
Raquel Nobre Guerra, "Senhor Roubado", Douda Correria,
Abril de 2016
No futuro será publicado um livro só com as ilustrações de capa para livros da Douda Correria. Devemos esta ao talento de Luís Henriques. Ocupa capa e contracapa, num desenho onde o realismo das formas não atraiçoa a poética distribuição dos elementos.
O livro do ano
Ruy Castro, “Chega de Saudade”, Tinta da China, Junho de
2016
Num ano em que o pior do Brasil esteve no centro das atenções, exibido como um espectáculo deplorável de degradação política, poder recordar o que de melhor o Brasil tem e terá foi uma bênção. "Chega de Saudade" não é, como disse, apenas um ensaio acerca do género musical bossa nova, ultrapassando em muito aquilo a que se propõe com extrema simplicidade. Enquanto objecto, é um livro perfeito. Praticamente tudo o que anteriormente elogiámos noutras obras podíamos elogiar nesta. Mas, além disso, é um testemunho desassombrado desse mundo aparentemente insular da arte e dos artistas. Dentro do mundo, mas com uma vontade imensa de existir fora do que nele se interpõe entre o direito à felicidade e a certeza da morte. É também um livro sobre música num ano em que a canção foi merecidamente elevada à condição de literatura com a atribuição do Nobel a Bob Dylan. Chega de saudade, o futuro está à porta.
7 comentários:
Melhor nome de editora: indiscutivelmente «Douda correria». É caso para dizer que deixa os outros a milhas de distância.
:-)
Oh, todos sabemos que há quem interprete lindamente o Bashô, mesmo sem recorrer às notas de rodapé! :)
É um facto.
Adorei este post, xiça.
Não sei como aqui cheguei mas que bom que cheguei.
Obrigado, Laura.
Belos prémios, sim, senhor.
Alguns serão até mais interessantes do que os livros a que foram atribuídos.
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