«— Se eu quisesse, enlouquecia». Herberto Helder (n. 1930
– m. 2015) começou desta forma um dos mais relevantes livros da ficção
portuguesa vinda a lume na segunda metade do séc. XX. Estávamos em 1963. Os
Passos em Volta assinalavam as deambulações de um corpo irrequieto, centrado em
si mesmo no combate travado com o mundo. Mais de 50 anos passados sobre a
publicação dessa obra, cabe-nos reconhecer que a condicionante deu lugar a uma inevitabilidade.
Talvez hoje faça mais sentido questionarmo-nos sobre como não enlouquecer neste
mundo que é o nosso. A alienação parece ser o paradigma que tomou conta do quotidiano,
normalizando a propagação de transtornos, distúrbios e doenças mentais. À
loucura da normalidade, como queria Arno Gruen, talvez devêssemos contrapor uma
normalização da loucura. As estatísticas são avassaladoras, embora possam ser
dispensadas. Basta atentarmo-nos aos desequilíbrios evidentes de uma cultura que
parece colapsar a cada dia que passa, alienada dos seus valores fundadores mais
básicos.
Como chegámos aqui? Pequena Europa (Mariposa Azual, Dezembro de 2016),
o mais recente romance de Mafalda Ivo Cruz (n. 1959), questiona-nos
precisamente sobre as vias demenciais de uma civilização. Não estando preocupada
em contar-nos uma história, a autora coloca-nos num cenário com personagens
difusas cujas vozes se intercalam com alguns dos actores de uma História
europeia em ruínas. O pintor austríaco Richard Grestl (n. 1883 – m. 1908) e o
compositor Arnold Schönberg (n. 1874 – m. 1951), o anarquista Bakounine (n. 1814 –
m. 1876) e o revolucionário Sergey Netchaiev (n. 1847 – m. 1882), Schuman (n.
1886 – m. 1963), Vincent van Gogh (n. 1853 – m. 1890), Egon Schiele (n. 1890 –
m. 1918), entre tantos outros, são espíritos que atravessam o romance. Que
papel desempenham? Talvez o de sintomas que permitem compreender, em retrospectiva, uma época de
falência absoluta, demarcada pela experiência soviética e pelo nazismo da II Grande Guerra.
A Europa surge, deste modo, enquadrada na arquitectura de
um manicómio onde vislumbramos tanto o fracasso das ideologias como a ruína de
um humanismo supostamente edificador da cultura ocidental. Restam ruínas, destroços, lixo, o esqueleto de uma loucura descarnada, reflectida na indiferença com que arrumamos os dias varrendo a miséria para debaixo de tapetes de hipocrisia e de pseudo-cinismo. A loucura é, pois, o
ambiente dominante, de tal modo que quase deixa de ser possível destrinçar a
insânia da lucidez. Que linha separa os dois pólos? Haverá uma linha que separa
os dois pólos? A páginas 309 o quadro é sugestivo: «Uma tela de
1,50 por 1,40. O fundo é branco. Um homem de joelhos no chão cola uma fita
preta em diagonal, entre o canto superior esquerdo e o inferior direito». Ora,
talvez esta fita preta que atravessa a tela na diagonal possa de algum modo
representar o curso da História. Entre cada um dos cantos, o negrume faz equivaler
a religião à loucura, a cabeça de Moisés aparece-nos como o princípio de algo distorcido
pelo tempo. Ei-lo vindo ao nosso encontro, anunciando a boa-nova, impondo as
suas leis:
«Penso que o meu maior pavor é tornar-me pobre ao ponto de ter de
vender lâminas de barbear, e roubá-las, assaltar sepulturas, prostituir-me com
homens e viver numa horda de gente que dorme na rua, enfim, ser praticamente um
intocável. Eu, europeu do século XXI. Ver-me reduzido a lavar escadas em casas
alheias, pedir para comer, roubar a comida de alguém, matar por comida, enfim,
realmente ser obrigado a matar por comida.
Eu, que tenho o meu próprio céu. O
meu próprio pai e a minha própria mãe. Eu, que quando fui tirado das águas não
gostei nada.
Foi uma mulher meio aleijada que me tirou da cesta e me trouxe
para casa, para um quarto cheio de roupa o chão; tinha esventrado uma cómoda e
as gavetas arrancadas estavam para ali, pareciam pequenas urnas funerárias para
as crianças.
E estava escuro, muito escuro naquele quarto. E ela passou a
noite sentada a beber, de costas para mim» (p. 310).
Com um primeiro romance
publicado em 1995, Mafalda Ivo Cruz mantém um grau de exigência atípico. Talvez
isso explique a publicação deste livro numa pequena editora, de distribuição
restrita, mas com igual obstinação na divulgação do diverso. Pequena Europa é
um livro complexo, tanto pela dispersão voluntária dos temas, como pela
proliferação de vozes sobrepostas e de personagens fragmentárias. Repleto de
alusões, de envios, de citações, de elipses, parece querer negar a sua própria condição
ficcional. Na realidade, lemo-lo amiúde como se estivéssemos a ler um ensaio acerca da desesperança. Desafiante,
pelo tom abertamente crítico com que avoca a actualidade, mas também pela
violência das imagens que apontam as contradições da nossa época. Talvez já não importe tanto quem fala, mas do que e como se fala:
«Tornamo-nos anarquistas graças aos nossos líderes, aos
nossos dirigentes, aos sete anões da branca de neve, uns bonecos de pau que nos
querem assassinar.
Mas há sempre tráficos, maneiras, como ninguém ignora, até
horríveis, as maneiras mais horríveis de ganhar dinheiro sem lhes dar um kopec.
Senão, o que seria dos pobres? Não são os pobres que pagam os impostos?
Todos
os pobres vêem muita televisão – e pagam-na, têm de pagar. – E passam as noites
na net. Todas as noites os pobres andam pela net a procurar não se sabe o quê,
e os prostitutos, os velhos, os doidos, toda essa gente qualquer dia sai do
covil com as crianças ao ombro, e põem-se a caminho da Segurança Social, da
Assembleia Nacional, do Parlamento Europeu, pedem as moradas dos ministros
alemães, luxemburgueses, holandeses, entram no Eliseu como entraram na Bastilha
e depois logo se vê, porque há para aí muita arma a circular como no tempo da
Louise Michel, digo eu, no tempo do Netchaiev, e de Paris dos Communards ____ .
Mas foram dias benignos, esses, em que, no meio da hecatombe ainda se pensava
que tudo poderia vir a acabar bem, como numa comédia musical. E, realmente, o
que ficou parece uma gigantesca peça de teatro, falam de instituições de
caridade, cantinas, distribuição de cobertores, talvez lá vá amanhã por ser
aqui perto da igreja, há equipas que andam a recolher em camiões os que dormem
na rua.
Frágil e volátil, a juventude paira no horizonte. Os jovens
transformaram-se em grandes balões de seda branca enfunados que a toda a
velocidade correm os céus. Anjos, Aviões de guerra, porta-aviões, bombas. Um
pequeno anjo traz sempre outro, pensamos nós, e mais tarde, mais tarde! A mesma
coisa! A mesma! Agora os anjos estão todos sentados nas proas dos barcos ou
pendurados nos mastros a cantar o Horst Vessel lied. Propaganda. Conformismo.
Matadouro. Parecem mesmo crianças, ou então parece que é sempre a mesma criança
a suceder-se a si própria, a toda a velocidade pelo céu, numa ira sem fim» (pp.
172-173)
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