O meu primeiro dia de trabalho como livreiro ficou marcado,
entre outras razões, por um atraso provocado pela inaptidão para ler horários
de shopping. Entre as outras razões guardarei, para sempre, um cliente muito
especial. Estávamos em Outubro, entrou na livraria de chinelos e camisa
totalmente aberta. Debaixo da camisa salientava-se uma proeminente barriga,
pêlos no peito atravessado por uma corrente. Vestia calças de ganga deslavadas.
Olhei para ele com o espanto que não me mereciam as raparigas engalanadas em dia de inauguração, tendo logo ali afirmado, entre colegas, uma certa tendência
para os desastres. O homem talvez tenha interpretado no meu olhar uma luz de
simpatia, pelo que se me dirigiu. Rosto vermelho e enrugado, pele salgada como
a dos pescadores, tom de voz abagaçado, perguntou se vendíamos O Livro do Meio.
Com a maior das seguranças, respondi-lhe aliviado que sim. Tinha acabado de
etiquetar e arrumar o material, sabia bem que tínhamos disponível para venda as
memórias da Maria Velho da Costa e do Armando Silva Carvalho (à venda no wook
por €3, com 10% de desconto, como atesta a imagem ao alto). Dirigi-me à estante das biografias,
retirei o livro e coloquei-o na mão da figura defronte. O homem pegou
no livro com cuidado, diria mesmo carinhosamente, sendo-lhe perfeitamente
perceptível a comoção. Agarrou no objecto com as duas mãos, olhou-me nos olhos
e explicou-se: «sou amigo de infância do armandinho, disseram-me que ele fala
de mim neste livro». Não sei se falava, se não, mas cheguei a contar esta história
ao autor visado. Por razões que não aprofundarei agora, guardei para sempre o
olhar daquela figura que se me apresentou em dia de estreia como um dos mais exemplares
poderes desta inútil actividade que é escrever livros. E o resto é conversa.
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