Fruto da relação entre um alemão e uma francesa de origem
judaica, Max Aub (n. 1903 – m. 1972) nasceu em Paris. O pai era, por assim
dizer, caixeiro-viajante. Retido em Espanha aquando do início da I Grande
Guerra, a família mudou-se para Valência aí se fixando e adquirindo
nacionalidade espanhola. A formação de Aub será fundamentalmente espanhola,
vindo a juntar-se ao Partido Socialista Operário Espanhol em 1929. A Guerra
Civil empurrou-o novamente para França. Com a ascendência judaica e as opções
de esquerda a servirem de estigma, foi feito prisioneiro no Campo Vernet (campo
de concentração no sul de França).
Apesar da obra vastíssima, Max Aub é conhecido em Portugal pela colectânea de estórias intitulada Crimes Exemplares.
A editora Ulisseia recuperou, em tempos, o romance As Boas Intenções. E julgo ser tudo
o que de Max Aub se encontra traduzido para português, à excepção da
recentíssima edição de Manuscrito Corvo (Antígona, Junho de 2017).
No prefácio
do tradutor, Júlio Henriques informa que Max Aub ficou detido em Vernet duas
vezes, conseguindo finalmente fugir para o México, em 1942, graças ao cônsul
mexicano em França «Gilberto Bosques Saldívar (1892-1995), o corajoso diplomata
que salvou do nazismo mais de trinta mil refugiados» (p. 11). Nunca será excessivo
lembrá-lo. Manuscrito Corvo surge com base em notas recolhidas dos tempos de Vernet. Quem fala é um corvo, ao que parece factual, que deambula pelo campo de
concentração e observa a estranha realidade humana com que se depara. O tom é
de fábula, embora a "língua corvina" praticada por Jacobo tenha pouco de
fabuloso. Em breves apontamentos, por vezes brevíssimos, o corvo Jacobo descreve
com apurado sentido satírico as desventuras da humanidade.
Homem que leia este texto, algures indefinido entre a novela, o ensaio, o conto, tenderá a considerá-lo resultante de um humor negro deveras cruel. Mas
cruel é ver num corvo o símbolo da morte. E ainda que este corvo desconheça o
brasão de Lisboa, desconhecimento que o leva a ser omisso no que a emblemas diz respeito, não
podemos dizer que esteja mal informado sobre assuntos maiores tais como a
irracionalidade dos ismos, o absurdo dos deuses, as contradições do trabalho, a
mania da higiene, a paranóia da burocracia e das hierarquias, o reinado do
dinheiro, a arte da política:
DA POLÍTICA
Definição: Arte de dirigir.
Meio: Fazer da hipocrisia virtude. (Os que não o
conseguem chamam-se sectários, parciais, fanáticos, ou simplórios, crédulos,
cândidos.)
Exemplo:
— Quem, fulano? É um cabrão.
Entre fulano.
— Caro fulano! Há quanto tempo não te via! Por onde tens
andado?
Em textos ora mais desenvolvidos, ora mais imediatos,
Jacobo tem no campo de concentração uma espécie de zoológico humano ao seu dispor.
Convenhamos que o ambiente não é exactamente natural, mas oferece uma
panorâmica e um ângulo de observação que a bom entendedor bastará. A lógica
deste campo, afinal, é a lógica da sobrevivência, a qual se aplica tanto dentro
como fora de cercas e independentemente das guardas. Em síntese, poderemos
sempre concluir «que se tivéssemos melhores olhos veríamos que os homens só
compreendem uma infinitésima parte do existente e que essa mediocridade preside
às suas vidas» (p. 133). Fábula de contornos satíricos, baseada numa
experiência pessoal, Manuscrito Corvo amplia os absurdos da existência humana
temperando-os com um humor irresistível. O trabalho, o dinheiro, a política,
são dissecados com a simplicidade e o sarcasmo de quem nos olha como se
estivesse a olhar na raiz antropológica de uma desgraçada condição. Por mais que
sejam os títulos a que nos oneremos, afinal somos bichos. Ainda por cima sem
asas. E é fundamental que o não esqueçamos. Melhor será que o lembremos
amiúde, sob pena de julgarmos que no mal por nós perpetuado existe
algo que não seja da nossa safra. A propósito:
DO FASCISMO
O mundo humano anda agora dividido em dois: entre os que
lutam pelo e contra o fascismo. Do ponto de vista empírico, está tudo claro,
mas a minha sede de saber, a minha curiosidade, levou-me —para
maior glória da ciência — a averiguar em que consiste tal pomo de discórdia. Eis o
resultado parcial da minha investigação:
Os Fascistas são racistas, e não permitem que os judeus
se lavem ou que comam com os arianos.
Os Antifascistas não são racistas, e não permitem que os
negros se lavem ou que comam com os brancos.
Os Fascistas põem estrelas amarelas nas mangas dos
judeus.
Os Antifascistas não fazem isso, basta-lhes a cara do
negro.
Os Fascistas põem os antifascistas em campos de
concentração.
Os Antifascistas põem os antifascistas em campos de
concentração.
Os Fascistas não permitem greves.
Os Antifascistas acabam com as greves a tiro.
Os Fascistas controlam as indústrias directamente.
Os Antifascistas controlam as indústrias indirectamente.
Os Fascistas podem viver em países Antifascistas.
Os Antifascistas não podem viver em países fascistas nem
em alguns países antifascistas.
É certo que o mundo mudou, não é o mesmo que era na
década de 1940. Feita a ressalva, o leitor que descubra as diferenças.
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