terça-feira, 22 de agosto de 2017

MANUSCRITO CORVO

Fruto da relação entre um alemão e uma francesa de origem judaica, Max Aub (n. 1903 – m. 1972) nasceu em Paris. O pai era, por assim dizer, caixeiro-viajante. Retido em Espanha aquando do início da I Grande Guerra, a família mudou-se para Valência aí se fixando e adquirindo nacionalidade espanhola. A formação de Aub será fundamentalmente espanhola, vindo a juntar-se ao Partido Socialista Operário Espanhol em 1929. A Guerra Civil empurrou-o novamente para França. Com a ascendência judaica e as opções de esquerda a servirem de estigma, foi feito prisioneiro no Campo Vernet (campo de concentração no sul de França). 
Apesar da obra vastíssima, Max Aub é conhecido em Portugal pela colectânea de estórias intitulada Crimes Exemplares. A editora Ulisseia recuperou, em tempos, o romance As Boas Intenções. E julgo ser tudo o que de Max Aub se encontra traduzido para português, à excepção da recentíssima edição de Manuscrito Corvo (Antígona, Junho de 2017).
No prefácio do tradutor, Júlio Henriques informa que Max Aub ficou detido em Vernet duas vezes, conseguindo finalmente fugir para o México, em 1942, graças ao cônsul mexicano em França «Gilberto Bosques Saldívar (1892-1995), o corajoso diplomata que salvou do nazismo mais de trinta mil refugiados» (p. 11). Nunca será excessivo lembrá-lo. Manuscrito Corvo surge com base em notas recolhidas dos tempos de Vernet. Quem fala é um corvo, ao que parece factual, que deambula pelo campo de concentração e observa a estranha realidade humana com que se depara. O tom é de fábula, embora a "língua corvina" praticada por Jacobo tenha pouco de fabuloso. Em breves apontamentos, por vezes brevíssimos, o corvo Jacobo descreve com apurado sentido satírico as desventuras da humanidade. 
Homem que leia este texto, algures indefinido entre a novela, o ensaio, o conto, tenderá a considerá-lo resultante de um humor negro deveras cruel. Mas cruel é ver num corvo o símbolo da morte. E ainda que este corvo desconheça o brasão de Lisboa, desconhecimento que o leva a ser omisso no que a emblemas diz respeito, não podemos dizer que esteja mal informado sobre assuntos maiores tais como a irracionalidade dos ismos, o absurdo dos deuses, as contradições do trabalho, a mania da higiene, a paranóia da burocracia e das hierarquias, o reinado do dinheiro, a arte da política:

DA POLÍTICA

   Definição: Arte de dirigir.
   Meio: Fazer da hipocrisia virtude. (Os que não o conseguem chamam-se sectários, parciais, fanáticos, ou simplórios, crédulos, cândidos.)
   Exemplo:
   — Quem, fulano? É um cabrão.
   Entre fulano.
   — Caro fulano! Há quanto tempo não te via! Por onde tens andado?

Em textos ora mais desenvolvidos, ora mais imediatos, Jacobo tem no campo de concentração uma espécie de zoológico humano ao seu dispor. Convenhamos que o ambiente não é exactamente natural, mas oferece uma panorâmica e um ângulo de observação que a bom entendedor bastará. A lógica deste campo, afinal, é a lógica da sobrevivência, a qual se aplica tanto dentro como fora de cercas e independentemente das guardas. Em síntese, poderemos sempre concluir «que se tivéssemos melhores olhos veríamos que os homens só compreendem uma infinitésima parte do existente e que essa mediocridade preside às suas vidas» (p. 133). Fábula de contornos satíricos, baseada numa experiência pessoal, Manuscrito Corvo amplia os absurdos da existência humana temperando-os com um humor irresistível. O trabalho, o dinheiro, a política, são dissecados com a simplicidade e o sarcasmo de quem nos olha como se estivesse a olhar na raiz antropológica de uma desgraçada condição. Por mais que sejam os títulos a que nos oneremos, afinal somos bichos. Ainda por cima sem asas. E é fundamental que o não esqueçamos. Melhor será que o lembremos amiúde, sob pena de julgarmos que no mal por nós perpetuado existe algo que não seja da nossa safra. A propósito:

DO FASCISMO

  O mundo humano anda agora dividido em dois: entre os que lutam pelo e contra o fascismo. Do ponto de vista empírico, está tudo claro, mas a minha sede de saber, a minha curiosidade, levou-me —para maior glória da ciência — a averiguar em que consiste tal pomo de discórdia. Eis o resultado parcial da minha investigação:
  Os Fascistas são racistas, e não permitem que os judeus se lavem ou que comam com os arianos.
   Os Antifascistas não são racistas, e não permitem que os negros se lavem ou que comam com os brancos.
   Os Fascistas põem estrelas amarelas nas mangas dos judeus.
   Os Antifascistas não fazem isso, basta-lhes a cara do negro.
   Os Fascistas põem os antifascistas em campos de concentração.
   Os Antifascistas põem os antifascistas em campos de concentração.
   Os Fascistas não permitem greves.
   Os Antifascistas acabam com as greves a tiro.
   Os Fascistas controlam as indústrias directamente.
   Os Antifascistas controlam as indústrias indirectamente.
   Os Fascistas podem viver em países Antifascistas.
   Os Antifascistas não podem viver em países fascistas nem em alguns países antifascistas.

É certo que o mundo mudou, não é o mesmo que era na década de 1940. Feita a ressalva, o leitor que descubra as diferenças.

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