Há já algum tempo que ando para linkar um belo texto de Jorge Muchagato. Amália Rodrigues e Dylan Thomas conjugados numa experiência de vida íntima, mas confessável. Vale a pena ler na íntegra. Deixo um excerto:
Amália ia cantar em Lisboa numa noite de Abril desse ano
de 1992, na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, em recital
repartido com um cantor, numa ocasião de solidariedade que agora não recordo. E
eu regressava: naquela sala a ouvi pela primeira vez ao vivo, nove anos
antes, na noite de 26 de Maio de 1983 (a célebre apresentação com António
Variações na primeira parte) e depois em 20 de Dezembro de 1985 na Gala dos
Finalistas de Direito (com Luís Góis, António Bernardino, fado de Coimbra, Rosa
Lobato de Faria, declamação, e Herman José). Sozinho fui, como quase sempre,
feita uma ou outra excepção, ia aos recitais de Amália. Encontrei Amália no
umbral do meu entendimento, a minha idade nunca esteve em acordo com as
circunstâncias, com o tempo; nem com a arte em que me encontrava. E, com
Amália, essa realidade adquiriu muito cedo, ao juízo dos outros, uma triste
feição exótica. Todavia, eu alcançava a tristeza da triste feição, mas não
compreendia o sofrimento do exotismo. Era-me indiferente, uma vez que dobrava o
cabo do exotismo na recompensa da beleza do sofrimento e da tristeza. É bela, a
tristeza, mas é necessário que se saiba tal coisa.
Cheguei cedo a Lisboa e entrei numa das livrarias que ao
tempo mais frequentava e hoje já não existe, a Livraria Arco-Íris, no centro
comercial do mesmo nome á avenida Júlio Dinis, frente ao Campo Pequeno. Apesar
de ter sido fechada ao trânsito e sobejasse de duas ou três esplanadas e de
meia dúzia de árvores domesticadas, sempre achei aquela rua triste e não
encontro porquê. Talvez pelas ruínas de um prédio de pobre art nouveau portuguesa
que lá resistiu. Recordo muito bem essa noite urbana pois nada havia nela de
excepcional e a memória estava desprevenida de toda a fixação. A minha solidão
aceitava no seu denso vazio a solidão nocturna; e ao mesmo tempo, em qualquer
revolta profunda e impronunciável, rejeitava-a na frieza metálica e seca,
estéril, do ruído do trânsito, do traço das luzes dos faróis dos automóveis e
dos autocarros que se desfaziam de imediato na ilusão ocular, dos passeios
percorridos por quase espectros apressados, sombras, precipícios alheios. Devo
ter jantado em Lisboa nessa noite, creio que sim, para me achar ali. Havia um
restaurante manchado de decadência precoce no piso abaixo do nível da rua,
uma coisa angustiada e escura com laivos de glória perdida. Decidi
fazer tempo na livraria até à hora do recital. Aprecio livrarias onde
paire um silêncio suficiente, são lugares onde gosto de pensar e de encontrar,
palavras em mim ou livros nas estantes.
E encontrei este livro de lombada tão breve: A mão
ao assinar este papel, de Dylan Thomas (1914-1953), poeta de vida trágica
que eu então não conhecia. O pequeno livro, com cinquenta páginas onde vivem
doze poemas na sua linguagem original e na sua tradução portuguesa, exerceu
sobre a minha sensibilidade um fascínio imediato.
(…)
Este livro salvou a minha solidão dessa noite, a mim, que
nessa altura padecia da ilusão de ser salvo, até ao início do recital de
Amália.
Jorge Muchagato, in O Sintoma da Verdade.
1 comentário:
Muito obrigado Henrique por dares notícia do que escrevi. Um abraço! :)
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