Na biografia que dedicou a Léon Trotski (n. 1879 – m.
1940), o poeta brasileiro Paulo Leminski mostra-se especialmente atento ao livro
Literatura e Revolução, referindo-se-lhe como o livro em que Trotski «formulou
com maior clareza suas utopias mais vastas, a medida de amplidão do sonho
revolucionário que o consumia e impulsionava». A história de Trotski é
geralmente reduzida a três momentos essenciais: a adesão à facção bolchevique
liderada por Lenin e, na sua sequência, o relevante papel desempenhado na
chamada Revolução de Outubro; a perda de influência para Stalin após a morte de
Lenin; a expulsão do partido em 1927, seguida de exílio e assassinato no
México. Os pormenores ficam para depois. A história de Literatura e Revolução é
o que aqui mais nos interessa. Leminski diz que o livro foi fundamentalmente escrito
no Verão de 1922, ou seja, numa altura de conflito aceso com a ascensão
estalinista. No início, deveria ser apenas um prefácio para a edição das suas
Obras. Acabou por resultar na «mais lúcida meditação sobre arte e literatura
deixada por um bolchevique» (idem).
Um dos aspectos mais reveladores desta obra
está sublinhado na nota do editor à edição portuguesa, com tradução de Serafim
Ferreira, e edição da Editorial Fronteira (Dezembro de 1976): «Trotski rejeita
qualquer forma de censura sobre os artistas e formula mesmo o princípio da “liberdade total no
domínio da arte”». De facto, isso mesmo podemos aferir quando, de um modo muito
incisivo, o autor por diversas vezes afirma que «A arte e a ciência não
procuram patrões; a arte, pela sua própria existência, sempre os recusou»; ou
que «A arte, como a ciência, não exige ordens e, pela sua própria essência, nem
sequer as tolera». Mas Trotski vai mais longe, ao defender «que não existe
qualquer cultura proletária, nem nunca haverá. E, na realidade, não há razão
para o lamentar: o proletariado tomou o poder precisamente para acabar aí para
sempre com a cultura de classe e abrir caminho a uma cultura humana». Entusiasmado
com a alfabetização das massas, excitado com a possibilidade de uma cultura
artística aberta a todas as expressões e para todos, Trotski manifesta-se,
porém, um crítico acérrimo de todas as formas de misticismo, pessimismo, cepticismo,
de uma tendência a que chama “cosmismo”, variante do misticismo, não se
furtando a apontar o dedo quando julgava necessário: «Sob a máscara de um
cidadão civilizado, o nobre Versilov foi no seu tempo o parasita mais
esclarecido da cultura estrangeira»; «Pelo seu parasitismo intelectual, pela
sua bajulação, pela sua vilania, Rozanov apenas conseguiu levar a uma lógica os
seus próprios traços espirituais comuns: a cobardia perante a vida e a cobardia
perante a morte»; «O que é mais exacto e mais constante em Rozanov, de facto, é
o seu rastejar de verme perante o poder. É um verme que escreve, um verme que
se estende, desliza, encolhe, se contrai e se descontrai consoante as
necessidades, mas desagrada sempre por ser um verme»; «Biély é um cadáver e não
ressuscitará em nenhum Espírito, seja ele qual for». As preferências do autor vão
para Blok, a sua tolerância vai para o futurismo de Maiakóvski e seus
afilhados: «Biezmienski seria impossível sem Maiakovski e Biezmienski é
realmente uma esperança».
Passados cem anos sobre a Revolução de Outubro,
dentro em breve cem anos terão passado sobre esta obra de um dos rostos da Revolução.
Que nos oferece ela no nosso tempo? Que nos poderá oferecer para o futuro?
Desde logo a ideia de que a criação artística é inerente ao processo histórico,
impulsiona a mudança e promove o olhar crítico, gera rupturas e acompanha a
histórica na sua dinâmica imparável. A arte é uma engrenagem desse processo,
não é um elemento decorativo dos paradigmas, não se esgota no elemento lúdico
da sua acção nem pode reduzir-se ao entretenimento que a sociedade de consumo
lhe exige. A criação artística, inalienável da vontade humana, promove a
cultura mesmo quando lhe questiona os valores supostamente mais firmes.
«Temos
necessidade de cultura no trabalho, de cultura na vida, de cultura nas relações
quotidianas». Esta percepção do autor de Literatura e Revolução chega-nos hoje
com a mesma vivacidade com que era proferida em 1923, tendo até talvez uma
outra urgência, uma urgência assinalada por um dos maiores ataques à cultura
que vem sendo perpetrado nos últimos anos pelas tecnologias da alienação, uma
indústria de pós-verdade com resultados à vista, assente no delírio, na
superficialidade, na excitação momentânea, na idiotização e na infantilização
das massas, ou seja, na privação de cultura, na usurpação de valores
absolutamente vitais para a democracia, como sejam a verdade e a liberdade. Não
há, jamais haverá, liberdade num mundo de mentira e de ilusões. Poderá apenas
haver uma domesticação asfixiante da criação, a qual terá também ao seu dispor
os homens novos da parvalheira geral, todos eles estilo e opinião, todos eles magnificamente
preparados para se entreterem com a discussão do sexo dos anjos enquanto, protegidos
pela distracção geral, os anjinhos do Deus mercado surripiam bancos, paisagem,
bens essenciais. «A arte pode ser o maior aliado da revolução desde que
permaneça sempre fiel a si mesma». Ora aí está um belo ensinamento a reter no
presente e para o futuro.
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