quinta-feira, 12 de outubro de 2017

INSANUS

Carlos Querido (n. 1956) é autor de dois romances históricos com Caldas da Rainha em pano de fundo. Insanus (Abysmo, Julho de 2017) introduz o autor num outro género, embora possamos dizer que o pano de fundo se mantém. Ao longo das 29 pequenas histórias aqui coligidas, são várias as alusões a locais, monumentos, espaços públicos facilmente identificáveis na paisagem caldense. Não é de todo original que um autor opte pelo seu lugar de origem enquanto microcosmo narrativo, estabelecendo dessa forma um nexo entre realidade e ficção capaz de armadilhar o terreno interpretativo em que o leitor se movimentará. No entanto, a paisagem geográfica é, no contexto das personagens destes contos, um elemento assessório. Muito mais determinante é o que se passa no interior de cada uma dessas personagens, na forma como percepcionam a realidade, no modo como essa percepção nos é apresentada, nos bloqueios, nas ilusões, nas confusões, nas anomalias que manifestam e as colocam num plano de insanidade não necessariamente paralelo ao da realidade, por, de facto, ser essa a sua realidade, mas de algum modo perturbador da ordem. 
Neste sentido, é deveras relevante a referência recorrente a um lugar de ordem, de norma, de lei, como o da Repartição que surge em diversos contos. «A Repartição, com as suas horas certas, com os seus formulários e os seus carimbos» (p. 40) é o local de trabalho, é o palco onde a norma se impõe à personagem mas da qual a personagem se desliga, a Repartição é o princípio da Vida de Cão (vide conto da página 43) que oprime as personagens, que as impele para o plano da insanidade, num jogo paradoxal de causa e efeito que nos permite associar a esse lugar de norma o princípio fundador das «sessões de terapia» (p. 89). «Lá na Repartição, no rame-rame do trabalho burocrático, os dias passavam assim-assim, sem sobressaltos nem novidades» (p. 99). Mas fora da Repartição os sobressaltos sucedem-se, o acaso toma conta do quotidiano, o inesperado manifesta-se, a vida ganha a forma de uma aventura nos limites do razoável, o novo é o inesperado, as palavras provocam dor, as sombras autonomizam-se, as estátuas ganham vida própria, o passado da amada fere como se fosse presente, a imaginação toma conta da razão, a vida vira-se do avesso, as memórias são como que feridas abertas, a lógica do raciocínio deixa os psiquiatras pensativos. 
Igualmente curiosa é a ligação que em alguns destes contos se estabelece entre luz e sombra. Somos tentados a julgar que, por vezes, é na sombra que a verdade melhor se manifesta. As personagens fecham os olhos, voltam-se para dentro, imersas no escuro do pensamento vêem com clareza que os olhos não logram os interstícios da intimidade. Logo num dos contos iniciais, a personagem fecha os olhos à beira do esquecimento. No conto justamente intitulado Sombras, esta frase: «As pessoas não se preocupam com as sombras, até ao dia em que perdem aquela que os deuses lhes destinaram» (p. 18). É como se à sombra se fizesse equivaler a identidade, uma identidade que os arquivos da Repartição não determinam nem a lógica da ciência desvela. Trata-se de uma identidade à qual chegamos pela via da solidão, porventura mística, perceptível apenas no silêncio da respiração mais profunda. 
No conto O Sussurro, a título de exemplo: «Fechou os olhos e confirmou o que sempre soubera: há um mundo de trevas em permanente ebulição, uma tempestade infinita, origem e fim do universo» (p. 39). Ora, uma pessoa fecha os olhos para dormir, para descansar, quando não os fecha para ver melhor. É precisamente isso que sucede nestes contos, as personagens fecham os olhos para ver melhor, fecham os olhos no encalço das suas confirmações. Insanus tenta oferecer-nos as visões daquele que fecha os olhos e imagina o mundo dos outros, a vida dos outros, a partir de personagens inquietantes nas quais a loucura e o delírio são apenas pretextos para repensar a realidade. Note-se, mais uma vez, como no já supracitado Vida de Cão a personagem descobre o caminho para casa: «Fechou os olhos para melhor descobrir o caminho para casa» (p. 45). Ao gesto de fechar os olhos corresponde um método alternativo aos métodos da razão, é um método sensível que nos devolve à casa essencial, talvez a uma paz interior que no limite se confunde com a cegueira enquanto alegoria de um afastamento relativo ao mundo visível, o da percepção, o dos fenómenos, o violento mundo dos fenómenos: «Pensou um dia que a libertação poderia estar na cegueira, porque a escuridão era o único bálsamo que conhecia, sem vísceras, nem ossos, nem sangue. Desejou-a ardentemente: uma parede sem brechas, por onde não entrasse um único raio de luz. E ficou cego. Diziam que era cegueira psicológica. Talvez. A verdade é que deixou de ver, e isso dava-lhe uma imensa tranquilidade» (p. 70).

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