Carlos Querido (n. 1956) é autor de dois romances históricos
com Caldas da Rainha em pano de fundo. Insanus (Abysmo, Julho de 2017) introduz
o autor num outro género, embora possamos dizer que o pano de fundo se mantém.
Ao longo das 29 pequenas histórias aqui coligidas, são várias as alusões a
locais, monumentos, espaços públicos facilmente identificáveis na paisagem
caldense. Não é de todo original que um autor opte pelo seu lugar de origem
enquanto microcosmo narrativo, estabelecendo dessa forma um nexo entre
realidade e ficção capaz de armadilhar o terreno interpretativo em que o leitor
se movimentará. No entanto, a paisagem geográfica é, no contexto das
personagens destes contos, um elemento assessório. Muito mais determinante é o
que se passa no interior de cada uma dessas personagens, na forma como
percepcionam a realidade, no modo como essa percepção nos é apresentada, nos
bloqueios, nas ilusões, nas confusões, nas anomalias que manifestam e as
colocam num plano de insanidade não necessariamente paralelo ao da realidade,
por, de facto, ser essa a sua realidade, mas de algum modo perturbador da
ordem.
Neste sentido, é deveras relevante a referência recorrente a um lugar de
ordem, de norma, de lei, como o da Repartição que surge em diversos contos. «A
Repartição, com as suas horas certas, com os seus formulários e os seus
carimbos» (p. 40) é o local de trabalho, é o palco onde a norma se impõe à
personagem mas da qual a personagem se desliga, a Repartição é o princípio da
Vida de Cão (vide conto da página 43) que oprime as personagens, que as impele
para o plano da insanidade, num jogo paradoxal de causa e efeito que nos
permite associar a esse lugar de norma o princípio fundador das «sessões de
terapia» (p. 89). «Lá na Repartição, no rame-rame do trabalho burocrático, os
dias passavam assim-assim, sem sobressaltos nem novidades» (p. 99). Mas fora da
Repartição os sobressaltos sucedem-se, o acaso toma conta do quotidiano, o
inesperado manifesta-se, a vida ganha a forma de uma aventura nos limites do
razoável, o novo é o inesperado, as palavras provocam dor, as sombras autonomizam-se,
as estátuas ganham vida própria, o passado da amada fere como se fosse
presente, a imaginação toma conta da razão, a vida vira-se do avesso, as
memórias são como que feridas abertas, a lógica do raciocínio deixa os
psiquiatras pensativos.
Igualmente curiosa é a ligação que em alguns destes
contos se estabelece entre luz e sombra. Somos tentados a julgar que, por
vezes, é na sombra que a verdade melhor se manifesta. As personagens fecham os
olhos, voltam-se para dentro, imersas no escuro do pensamento vêem com clareza que os olhos não logram os interstícios da intimidade. Logo num dos
contos iniciais, a personagem fecha os olhos à beira do esquecimento. No conto
justamente intitulado Sombras, esta frase: «As pessoas não se preocupam com as
sombras, até ao dia em que perdem aquela que os deuses lhes destinaram» (p.
18). É como se à sombra se fizesse equivaler a identidade, uma identidade que
os arquivos da Repartição não determinam nem a lógica da ciência desvela. Trata-se
de uma identidade à qual chegamos pela via da solidão, porventura mística,
perceptível apenas no silêncio da respiração mais profunda.
No conto O
Sussurro, a título de exemplo: «Fechou os olhos e confirmou o que sempre
soubera: há um mundo de trevas em permanente ebulição, uma tempestade infinita,
origem e fim do universo» (p. 39). Ora, uma pessoa fecha os olhos para dormir,
para descansar, quando não os fecha para ver melhor. É precisamente isso que
sucede nestes contos, as personagens fecham os olhos para ver melhor, fecham os olhos no encalço das suas confirmações. Insanus
tenta oferecer-nos as visões daquele que fecha os olhos e imagina o mundo dos
outros, a vida dos outros, a partir de personagens inquietantes nas quais a
loucura e o delírio são apenas pretextos para repensar a realidade. Note-se,
mais uma vez, como no já supracitado Vida de Cão a personagem descobre o
caminho para casa: «Fechou os olhos para melhor descobrir o caminho para casa»
(p. 45). Ao gesto de fechar os olhos corresponde um método alternativo aos
métodos da razão, é um método sensível que nos devolve à casa essencial, talvez a uma paz interior que no limite se confunde com a cegueira enquanto alegoria de um afastamento relativo ao mundo visível, o da percepção, o dos fenómenos, o violento mundo dos fenómenos: «Pensou um dia que a libertação poderia estar na cegueira, porque a escuridão era o único bálsamo que conhecia, sem vísceras, nem ossos, nem sangue. Desejou-a ardentemente: uma parede sem brechas, por onde não entrasse um único raio de luz. E ficou cego. Diziam que era cegueira psicológica. Talvez. A verdade é que deixou de ver, e isso dava-lhe uma imensa tranquilidade» (p. 70).
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