quarta-feira, 11 de outubro de 2017

UM CONTO DE CARLOS QUERIDO

PENDÊNCIAS

   Numa sessão de psicoterapia, desenterrou memórias do passado relacionadas com a perigosa gravidade. Na infinita aridez da planície, um pinhal manso de copas entrelaçadas a esconder o céu; num recanto secreto, por entre heras e musgo, um fio de água silencioso e breve, a derramar-se na terra argilosa; na velha mina da nascente, o esconderijo perfeito dos tesouros dos piratas e das coleções de cromos; caminhava de mão dada com a avó, quando uma pinha cheia caiu lá do alto; estendido na terra, com um doloroso hematoma, ouviu as palavras animadoras da avó: Deus na sua infinita sabedoria fez bem todas as coisas, olha os melões, imagina que nasciam nos pinheiros; à noite agradeceu a Deus por não ter sido atingido por um melão; mas ficou sempre aquela cisma: o que paira no ar pode cair; com a agravante que o avô lhe ensinou: quanto maior a altura, maior o tombo. No domingo seguinte, ao dirigir-se à igreja com os avós, ouviu um grande alarido; o sacristão desancava o sino com frenesim, a anunciar a ressurreição do Senhor, quando o badalo se soltou e lhe aterrou na cabeça; os paroquianos não ganharam para o susto, e o infeliz acólito levou dezoito pontos e não tugiu nem mugiu durante igual número de dias.
   Eram coincidências a mais. Antes prevenir do que remediar. Passou a evitar as sombras das árvores, porque nunca se sabe o que escondem as copas frondosas, bem como o lado interior dos passeios, porque há vasos e outros objetos em precário equilíbrio nas varandas. Mas o que mais o atormentava eram os sinos, com os seus badalos pendentes, arredondados e obscenos, prestes a abaterem-se sobre ele em repetidos pesadelos.
   Um dia teve um sonho estranho. Corria pela praia completamente nu, ao som do sino da aldeia dos avós: dlim... dlão... dlim... dlão dlim... dlão. Com a cadência do badalo do sino, baloiçavam-lhe os testículos. O ritmo tornou-se frenético e com um súbito estrondo o badalo caiu na areia. No silêncio que se seguiu acordou em sobressalto e tateou com mão trémula a confirmar que tudo estava no seu lugar. No dia seguinte, a mesma mão voltou a confirmar, na vã tentativa de afastar a inquietação que persistia em atormentá-lo. O gesto tornou-se um hábito. Não conseguia, nem por um momento, deixar de aconchegar aquela parte do corpo, de tal forma que, quando a namorada o deixou comentou jocosamente com as amigas, que uma das causas era a sua "relação obsessiva com os tintins".
   Decidiu procurar ajuda junto de um psicoterapeuta a quem expôs o seu caso. O médico sossegou-o: pende, mas não cai, fique tranquilo; pende, mas não cai. Depende, senhor doutor, depende. Imagine que alguém nasce com uma fragilidade congénita, e que a constante oscilação provoca um desgaste nos tecidos que leva à queda dos ditos. Não será possível fazer uns suplentes? É que eu só tenho estes e se tivesse um par de reserva, dava-me uma grande tranquilidade. Constou-me que os especialistas de medicina regenerativa desenvolveram uma tecnologia que permite criar tecido humano a partir das nossas células e conseguem manipular esse tecido de modo a construir órgãos. Fazia-se um molde com estes e resolvia-se o problema. O que é que o senhor doutor acha?
   Pensativo, o médico coçou a cabeça calva e sábia, em busca da melhor solução. Talvez não haja necessidade. Ora dispa-se e deite-se naquela marquesa. Agora dê um puxão. Com força. Ó senhor doutor, não me peça uma coisa dessas. Puxe, homem, puxe! Garanto-lhe que não caem e que isso vai restituir-lhe a confiança e desmistificar os seus receios. Puxe!, gritava desesperado perante a passividade do paciente. Desculpe mas não o faço. Tantos anos cheio de cuidados e agora ia dar cabo de tudo? Em desespero de causa, o médico calçou uma luva de latex e deu um puxão súbito e firme. O paciente soltou um grito aflitivo e ficou-se, hirto, tolhido, sem palavras. Didático, explicava o médico: trata-se de terapia de choque, o senhor vai fazer isto todas as manhãs, antes de sair de casa, e sentir-se-á muito melhor.
   Já na rua, fez o gesto habitual, para confirmar se estava tudo no lugar. Aterrorizado galgou as escadas do consultório. Bem o avisei! O senhor doutor desgraçou-me. Agora não os sinto! Não os sinto! Por favor, ajude-me a procurar debaixo da marquesa.


Carlos Querido, in Insanus, Abysmo, Julho de 2017, pp. 77-79.

3 comentários:

Diogo Almeida disse...

Genial.

maria disse...

:) uma revelação - o Carlos Querido.

hmbf disse...

Bom livro, este Insanus.