domingo, 17 de junho de 2018

AUTO-RETRATO


I - Diário de navegação

Movo-me cintilante com bandarilhas solares entre arenas de pétalas mortas. Pressinto as canetas cravadas e adormecidas.

Arrasto o segredo mineral dos ventos e contemplo o verbo derramado pela raiz. Grito nas veias atrás do sangue para esculpir a cor.

Vou comigo, escapando à loucura, carregado de pólen no papel à sombra do gesto. Aprisiono os sentidos e as vigílias de quem espera a palavra surda.

Apaziguo o corpo numa ruína sedutora onde bebo a areia insone. Fecho as janelas atrás da espuma marítima.

Recordo-me sem saída.


II - Condenação do corpo

Para curar o corpo vibro no vício da memória.
Encosto a sombra no ombro com a certeza duma morte
febril na luminosidade do escrito.

Persigo os versos no desgaste extremo do verso.
No rosto abatem-se os objectos encontrados na maré.
Nunca abandonarei a infância na constelação da manhã.

Reaprendo diariamente o espírito do meu corpo.
Na decifração do dia amadureço a ferrugem no peito,
uma corrosão iridiscente no abandono vigiado da boca.

Pernoito na reclusão cardíaca dos momentos de embarque.
Pertenço a lugar nenhum do estremecimento.
Ao espelho abandono-me no limite das veias.

Meu corpo de rudezas estendidas nos degraus e no crepúsculo.
Meu corpo de icebergues esculpidos pelo sol no regresso inundado.

Na escrita comunico com aquele que ama e demora
na linguagem dos movimentos derramados pelo húmus.



Miguel de Carvalho (n. 1970), in Neste Estabelecimento Não Há Lugares Sentados (2016). Herdeiro da experimentação surrealista, tem composto diversas obras que destacam um encadeamento vitalista e provocatório entre palavra e imagem. São disso exemplo maior as colagens reproduzidas no livro «No princípio não era o verbo» (DSO, Abril de 2015) e o romance-collage, em homenagem a Max Ernst, intitulado «A cidade dos paleólogos e as viagens nocturnas do capitão Dodero» (DSO, Dezembro de 2017), onde coloca em diálogo textos respigados em romances populares do séc. XIX e colagens desafiadoras com imagens de proveniência diversa. O onírico adquire nesses trabalhos uma nova dimensão, trazido à realidade através de representações que lhe captam espantosas associações livres e inesperadas. Cultor do livro-objecto, acerca do qual escreveu o interessante ensaio «Atrás das pálpebras, o sonho abriu os olhos. Tudo estava lá…» (DSO, Novembro de 2014), Miguel de Carvalho levou a cabo várias experiências revelando bom gosto e a absoluta independência editorial através da opção por edições artesanais de circulação restrita. Em Abril de 2016, alguns dos seus poemas anteriormente publicados nessas edições reapareceram, junta a outros, na colectânea «Neste Estabelecimento Não Há Lugares Sentados» (Alambique), composta por duas partes onde, ora em prosa, ora em verso, o acaso e o acidente vislumbram possibilidades de fixação na palavra poética, entendida enquanto «mediação entre uma linguagem verbal e visual». Uma espécie de ode a uma mulher desconhecida introduz-nos num universo íntimo marcado pelo desejo e pela distância, colocando o sujeito poético no lugar do voyeur que se interroga acerca da essência da sua condição de observador. Poesia feita de reflexos, de erupções imagéticas invulgares, num tom por vezes enigmático, noutras ocasiões assaltado por um encantamento proveniente das múltiplas possibilidades de conexão do olhar à realidade.

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