sexta-feira, 20 de julho de 2018

NÓ DE VERMES

   Foi um momento que me pareceu longuíssimo, ou, talvez que ao contrário, uma demorada suspensão que me pareceu momentânea. Mas era como morte, e eu não aguentava mais. Ou a minha vida era um pesadelo de que eu queria sair — e, para o horror de um pesadelo, tanto faz que ele seja, como nos pareça horrível —, e não podia sair doutra maneira dele; ou a morte me aparecia como um pesadelo que cobria de podridão tudo, todos, e eu próprio, e não era morrer o que eu queria, mas livrar-me da morte, da minha e da dos outros, mesmo que, para isso, eu tivesse de morrer. Havia talvez os que nasciam doidos, os que nasciam imbecis, os que iam ficando, pouco a pouco, vacinados contra a sordidez e a malignidade. Mas eu não era de uns nem de outros, ou as coisas tinham-se precipitado tão vertiginosamente, que uma pessoa sozinha não tinha tempo de ficar vacinada contra elas. A vacina faria efeito, quando já não fôsse precisa. Ou a vacina era colectiva, assim como eu me lembrava de uma vez ter sido vacinado no liceu, toda a gente em fila e o médico arranhando todas com a mesma espátula afiada. Mas, colectiva, não nos vacinava da angústia individual como a que eu sentia e ninguém partilhava. Tínhamos todos mais ou menos partilhado tudo, ou partilhá-lo-íamos ainda mais. Mas aquela solidão agónica que eu sentia, porque era uma solidão, parecia que, da partilha, se aumentava. Aumentando, mais nos atirava uns sobre os outros, e uns contra os outros — e contra, não sabia eu já se para amar, se para ferir de morte. E, assim num molho inextrincável, como um nó de vermes ou de víboras, cada um de nós era uma solidão terrífica, tanto mais terrífica quanto excessivamente povoada

Jorge de Sena, in Sinais de Fogo, 6.ª edição, ASA, Dezembro de 1995, p. 390.

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