quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

TELEGRAMA PARA D. JOÃO V


Eis, real senhor, Amérika;
Refúgio e amparo dos desesperados de europa,
Igreja dos inconfessos, santo e senha dos homicidas,
Capa e coberta dos jogadores,
Azáfama geral das mulheres livres,
Engano universal de todos e remédio particular de alguns;
Aqui maramos onde amarámos
Com âncoras, amarras e ânsias
Doutras enseadas, excelente rei;
Aqui maramos onde amáramos,
Aqui somos: bandeirantes, bandoleiros,
Moradores, mestiços, missionários;
Com a língua, os olhos, o medo, amargos,
Soletramos a selva, a seiva, a cachaça,
Os gritos dos animais, os seus tactos,
A anaconda, a onça, a boa, a barracuda, a tarântula,
Aqui soletramos Maranhão, Minas, Manaus,
Aqui mergulhamos o mar no ânus,
Aqui mergulhamos em vorazes rios de piranhas, mosquitos e suor,
Excelente rei, esta é Amérika;
Aqui maramos onde filtramos
Um pouco de metal, um niagara de sangue, cemitérios de Ameríndios,
Pobres escravos reduzidos;
Aqui onde maramos, praticamos o irremediável ofício de Caronte
Somos apenas aqui seus fuzis pragmáticos, remos de suas barcas,
Aqui maramos onde exercemos todo o duro, brutal e curto
Ofício da imperiosa Europa;
Aqui picamos as baronas dos impérios, excelente rei.
Aqui somos apenas vossos criados, ó hipocondríacos imperadores,
No entanto aqui lavramos o vosso testamento de ferro e sangue:
Por essa geografia de tronos passará um trovão de Átila,
Florescerá na Europa uma fauna de guilhotinas,
Palcos de catafalcos, todo o espectáculo do poder destituído
E, depois, Napoleão varrerá as vossas guerras de Hollywood,
A urina pestilenta da casta militar
               (Gigantescas bastilhas nos arquivos,
               Cigarros americanos no Século XX)
Voltareis, talvez, mas já não sereis vós
E tu, real senhor,
Os teus descendentes comerão os ratos dos esgotos,
Excelente rei;
Não construíste as pirâmides;
Não cozinhaste a comida das legiões de César
Não varreste os corredores dos partidos;
Não escreveste Espinosa;
Não pensaste Aristóteles nem sequer Maquiavel;
Não foste três vezes santo, três mil vezes sábio;
Foste apenas o senhor destes criados burlões, egoístas, ladros; gangsters sequiosos.


Manuel Resende (n. 1948), in Natureza Morta Com Desodorizante (1983). «Se algo define a poesia de Manuel Resende é a forma como não evita as solicitações da História, que tende, aliás, a grafar com maiúscula, num gesto que se foi tornando raro no panorama da poesia portuguesa recente. (...) O que permite que esta poesia da História não ceda ao elenco de boas intenções da poesia política é uma série de práticas herdadas quer da tradição moderna, quer da alta tradição literária que se manifesta em Resende quando menos se espera. (...) Numa linha paralela a esta poderia ainda referir-se a forma como a poesia de Manuel Resende acusa, nos momentos em que se entusiasma com a desarticulação morfológica e fonológica da palavra, ou com a produção de efeitos de paronomásia lúdica, o impacto de formas de experimentalismo literário próximos, no limite, da poesia concreta. (...) Em todo o caso, é claro que em Resende a vanguarda é um princípio de perturbação não apenas do artístico mas sobretudo da vida enquanto quotidiano (...)» (Osvaldo M. Silvestre, in A R(e)alidade e as Cerejas, posfácio a Poesia Reunida, Cotovia, Abril de 2018). Fotografia de Marcos Borga, respigada aqui.

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