Não é difícil perceber as razões que fizeram de
Winchester ’73 (1950) um clássico dos clássicos, com o carimbo de Anthony Mann
(1906-1967) em pico de actividade. Só no ano de 1950 estreou 4 filmes, três dos quais
no estilo western. Dois ficaram para a história do género como obras
fundamentais: The Furies/Almas em Fúria e este Winchester ’73. Referi-me a ele
anteriormente numa menção ao escritor Borden Chase (Vera Cruz, Backlash, The
Far Country, Red River, Bend of the River…), um dos principais contribuidores do
ideário nacionalista que contaminou o cinema sobre o Velho Oeste. Winchester ’73 não foge à regra,
podendo hoje ser lido como uma insustentável apologia das armas. Mas no início
da década de ouro do western a perspectiva era outra. A espingarda que ajudou a
conquistar o Velho Oeste aparece antes como um tesouro perdido, símbolo
do poder tal qual um ceptro real ou uma varinha mágica, a espada do Rei Artur.
O filme de Anthony Mann fez escola, estabelecendo
paradigmas, fixando modelos, fundando estereótipos que outros se encarregaram
de desconstruir posteriormente. O local da acção começa por ser Dodge City, ainda
hoje conhecida como a capital mundial dos cowboys. Michael Curtiz dedicou-lhe
um filme homónimo datado de 1939. A aura mítica de Dodge City está também
associada à presença de Wyatt Earp no território, o qual surge em papel
secundário neste filme de Anthony Mann. Oferece-lhe corpo o actor Will Geer. O
protagonismo fica para outros. Não devemos também perder de vista o facto de as
personagens serem colocadas inicialmente numa celebração do 4 de Julho, Dia da
Independência dos Estados Unidos, de 1876, ano da célebre batalha de Little
Bighorn. É o ano do centenário da Independência e da monumental derrota do
general Custer nas Guerras indígenas.
Todos estes factos são elementos decorativos no pano de
fundo de um filme que coloca em primeiro plano a disputa entre dois irmãos
desavindos. James Stewart é o lado bom da história no papel de Lin McAdam,
Stephen McNally é o lado mau no papel de Dutch Henry Brown. Da perseguição que
o primeiro faz ao segundo resulta a dinâmica da obra, pautada pela deriva de
uma Winchester ganhada por Lin McAdam num torneio de tiro. Dutch rouba-a, este
acaba por ter de a vender a um traficante de armas, os índios com quem o traficante
negoceia lançam-lhe mão, perdem-na numa peleja contra a cavalaria, o cobarde Steve
Miller fica com ela, que a perde para o fora da lei Waco Johnny Dean… Saltando
de mãos em mãos, a famigerada Winchester de 1873, única entre um milhão, transporta-nos
de cena em cena pelas matrizes do western.
Temos Wyatt Earp a tentar impor a lei em Dodge City, temos
atiradores implacáveis, temos os fora da lei, o assalto a um banco, temos os traficantes de armas,
temos índios em guerra, temos a cavalaria a proteger cidadãs indefesas, temos
cenas de perseguição a alta velocidade, temos cobardes e heróis, mulheres, uísque, batota, temos amigos
que são fieis como cães, temos o bom cowboy solitário em busca de vingança,
temos planos em contraluz que parecem pintados a tinta-da-china, temos Caim e
Abel. E neste conflito clássico temos uma recriação da luta entre o bem e o mal
que sempre fez do western um género essencialmente moral. Não moralista, que
isso é outra coisa. Antes um género que se preocupa em reflectir e pensar os
caminhos do bem e do mal, os paradoxos, as contradições, a forma como nesses
caminhos se cruzam a justiça e a injustiça, o amor e o ódio, a coragem e a
cobardia.
São vários os filmes de Anthony Mann que tenho sugerido.
Além deste, dediquei já atenção a The Furies (a obra-prima), Bend of the River,
The Far Country, The Tin Star (o melhor dos menos conhecidos). O que mais
aprecio nestes filmes é a capacidade por eles denotada de abordar os grandes
temas clássicos num contexto de puro entretenimento. Elementos populares como a
velocidade das perseguições, os tiroteios e os duelos, nunca esgotam por absoluto
o campo onde se desenrola a principal batalha. Esta é mais psicológica do que física,
sendo interior mostra-se através de planos focados nos pequenos gestos que
sugerem atitudes, receios, anseios, segredos. Há uma cena em Winchester ’73 de
que gosto particularmente e que pode servir de exemplo. A personagem
interpretada por James Stewart fala com o Sargento Wilkes, responsável por um
regimento em situação de inferioridade face ao cerco dos índios. Wilkes conta
em poucas palavras o seu historial militar, Stewart escuta-o atentamente.
Percebemos no olhar do cowboy uma certa nostalgia, misturada com uma ironia e
um respeito que não chegamos a entender de onde vêm. Apercebemo-nos apenas,
porque isso é sugerido, que daquela conversa surge um encontro inesperado. Só
mais tarde perceberemos porquê. Lin McAdam e o Sgt. Wilkes, agora no mesmo lado
da barricada, tinham outrora sido inimigos durante a guerra civil. Ironias do
destino que o cinema transforma em magia.
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