A janela do estúdio está aberta. Por um instante,
aqueles dois mundos desviam-se do reflexo
que um é do outro e conectam-se. Definem-se,
dissolvendo-se. Não há interior e exterior.
Um plano onde a chuva escorre e outro onde
o ar é condensação. Não há o homem e um duplo
que se contempla, essa árvore de torso retorcido,
defeituoso, que o tempo, só por milagre, cura
quando floresce a Primavera.
As vidraças nada separam, nada aproximam.
Dois mundos, as estações que se sucedem,
o dia e a noite afectados pela luz interior e exterior,
o que é inteiramente abstracto à superfície
e delicadamente lírico, emotivo, quase espiritual,
no olhar que se prolonga.
Por tudo isto, são pormenores o muro e as casas
para além do jardim ou a composição de natureza
morta no parapeito de madeira. O que importa
é a janela do estúdio, que está aberta, e como
a indeterminação, esse movimento que o
mundo respira, ali se revela.
Sandra
Costa (n. 1971), in Untitled. A estreia em 2002, com Sob a Luz do Mar
(Campo das Letras), revelou uma voz transparente, contida, depurada. Untitled
(volta d’mar, Dezembro de 2017) persegue os caminhos da luz, desta feita em
diálogo com fotografias a preto e branco de autores diversos (Elliott Erwitt,
André Kertész, Vivian Maier, Dorothea Lange…) A écfrase processa-se a partir de
uma complexa ralação de olhares, o do autor da fotografia e o da poeta que a
contempla. O poema surge desta relação como uma imagem no decorrer do processo
de revelação, da indefinição nublada e sombria das formas até à sua absoluta
definição. O título do primeiro livro já havia assumido a relevância da luz
nesta poesia, agora novamente sublinhada por uma noção do poema enquanto
reflexo. Mantendo-se a natureza no lugar da paisagem preferencial, ela surge enquadrada por uma contemplação afectada pelo silêncio e pela solidão. Os
jogos de luz permitem-nos ainda vislumbrar em alguns versos um tom nostálgico
que resiste à melancolia, inclinando-se mais para uma noção de espera onde
podemos adivinhar certa forma de fé na beleza: «Nesse instante, compreendes: o
único caminho / possível até à madrugada insubmissa / também se faz de esperas,
// ou de um detalhe que nos salva» (p. 18). Também por isto, podemos dizer que
esta é uma poesia que aparece em contramão com as tendências dominantes do seu
tempo.
6 comentários:
Obrigada pelas palavras dedicadas a este pequeno livro, Henrique Fialho.
O leitor é que agradece.
"persegue os caminhos da luz" :)
Gosto, claro!
Maria, este livrinho é muito bonito. E dá vontade de googlar os nomes dos fotógrafos referidos e das fotografias convocadas.
Caro Henrique, enviei-lhe email a propósito do googlar os nomes dos fotógrafos e das respectivas fotografias.
Muito obrigado, Sandra.
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