Desconheço as razões, minhas filhas, que fazem com que
neste nosso país tantas vezes os melhores versos surjam em prosa e a melhor prosa
surja em verso. Deve haver algo que o explique, matéria na qual não sou versado
nem me inspira empenhos para lá do gozo proporcionado pela leitura. Com o
pensamento ocupado noutras elucubrações, prefiro entreter-me com objectos
ambíguos na forma, híbridos no género, paradoxais na moral. Sempre me atraiu o
indefinido, na literatura ainda mais. Daí o deslumbre com tudo quanto alente a androginia
do espírito, mais ainda se acarretar aquela força do iconoclasta capaz de abalar
os pilares dos bons costumes (que são, quase sempre, maus conselheiros).
Um
nome: Mário-Henrique Leiria (n. 1923 – m. 1980).
Dois títulos: Contos do
Gin-Tonic (Estampa, 2.ª edição, Outubro de 1976) e Novos Contos do Gin seguido
de Fábulas do Próximo Futuro (idem, 2.ª edição, Janeiro de 1978).
Sobre o nome
pouco se sabe e muito se diz, o que é comum entre as nossas gentes. Terá sido
expulso das Belas Artes, em 1942, por más inclinações políticas. No surrealismo
à portuguesa também não se manteve muito tempo, saindo em dissidência para
formar um segundo grupo com aqueles que são hoje por todos tomados como os
primeiros: António Maria Lisboa, Mário Cesariny, etc. Na nota biográfica
oficial diz-se que «teve vários empregos, marinha mercante, caixeiro de praça,
operário metalúrgico, construção civil» e que andou à deriva por vários cantos
do mundo. O que não se diz tão oficialmente é que a fome lhe terá corrido as
entranhas. Numa das primeiras pequenas histórias dos Contos do Gin-Tonic,
percebemos ao que vinha no Portugal do Carreirismo:
Após ter
surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o.
Depois de ter
roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na
rua.
Voltou passados
vinte e dois anos, com chofér fardado.
Era Director
Geral das Polícias. Seu pai teve o enfarte.
Conclusão: se um homem tem de começar por algum lado,
pois que comece por conhecer os métodos do inimigo. Sobre as viagens com
carteira nada abastada, há quem diga que vinham do patrocínio comunista. Não
tenho provas. Certo é ter morrido só e magro. Andou nove anos pela América
Latina, para onde partiu em 1961, fazendo sabe Deus o quê. Ou talvez nem Deus o saiba, tão distraído que sempre anda. Minhas filhas,
Portugal também tem esta coisa curiosa de serem poucas as biografias
disponíveis de quem realmente teve vida para contar. Salvo raríssimas
excepções, o que vai surgindo pouco acrescenta ao ramerrão das pessoas comuns.
Pessoa essa que este Mário-Henrique não era, não podia ser, jamais terá sido.
Caso contrário, como poderia ele em tão poucas palavras definir o sentido da
existência num conto em verso que coloca em cena uma nêspera e uma velha?
RIFÃO QUOTIDIANO
Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o acontece
Portanto, se não quereis ser devoradas por uma velha,
erguei-vos da cama e protestai, não fiqueis mudas à espera do que
acontece, fazei acontecer. É deste caminhar caminhando, é deste fazer fazendo,
é desta vontade, deste desejo, desta paixão, que toda e qualquer existência
necessita se não quiser resumir-se ao pouco mais que nada de por cá andar com
a cabeça entre as orelhas. Aproveitai a lição, ide ou deixai que as pernas vos
levem, com a autonomia que é delas, para onde os "tiranos" da consciência
jamais vos levarão: uma aventura sem portos.
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