sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

A CIDADE E AS SERRAS


Campo ou cidade? A questão coloca-se como se fosse obrigatório optar por uma das alternativas, como se não fosse possível conciliá-las. O maniqueísmo nesta questão, como noutras, aliás, surge contaminado por preconceitos e por ideias feitas. Os apologistas do campo são quase sempre aqueles que não têm de sobreviver no campo, vivem na cidade alimentando uma nostalgia bucólica de sossego, paz e silêncio, como se a vida no campo pudesse ser reduzida à pureza do ar. Os do campo olham para a cidade sonhando com riquezas e confortos, ambicionando aceder aos lustres da fama, pensam na cidade como um mar de oportunidades. Até nelas naufragarem. Diz-se que no campo se é livre e saudável, que na cidade se leva uma vida doentia de servidão. Mas será mesmo assim? Eça de Queiroz (1845-1900), em A Cidade e as Serras, obra póstuma de 1901, parece não escapar ao padrão nesta divisão entre campo e cidade. A Paris de Jacinto, a que ele chama Civilização, surge retratada no início como palco da «vantagem de viver». O campo é dos brutos e das bestas, a cidade é dos homens cultos, das gentes instruídas, é de uma cultura académica, livresca, de biblioteca que fascina até ao ponto de o tumulto se tornar tédio absoluto. Também em Baudelaire encontramos o tédio como o sangue que corre nas veias da cidade. O fascínio pelas máquinas, pela indústria, pelas tecnologias, o gozo da novidade, das modas, a febre de ter e de aparecer, preenchem a agenda daquele que dela se torna escravo. Às tantas só ouvimos Jacinto suspirar: que maçada! Tudo se torna repetitivo, a multidão esboroa-se numa monotonia previsível, as máquinas falham, as tecnologias começam a desiludir, entram em desuso, e as pessoas, sobretudo as pessoas, adquirem em vida a lividez dos mortos. A cidade é uma paisagem de marcas, de montras, de teorias inúteis, a erudição revela-se vazia, supérflua, até o amor se resume à transacção comercial, uma infecção sentimental curável com distância, solidão, exílio. Da «vantagem de viver» chegamos ao «embaraço de viver», sobretudo quando a consciência se abre a uma contemplação que acabará por descobrir nas avenidas e nos becos da Cidade um acumular de lixo e de miséria, exploração, ruína, poluição: «E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca!» (p. 95) E isto é dito como se no campo não houvesse casas de putas, o campo, esse paraíso na terra onde se conserva a doçura dos gestos em gente bruta, animal, mas pura. Tretas! Tanto o campo como a cidade têm as suas abundâncias, e parece inegável que nesta o tempo vale mais do que naquele por serem acelerados os ritmos da vida. É o tempo, a experiência do tempo, aquilo que melhor nos permite separar ambas as realidades. Porque quanto ao mais são, o campo e a cidade, palcos onde os homens definham nesse processo de viver que consiste em fracassar, ou seja, em subir o mais alto possível para continuar constatando quanto se é ínfimo, porque se é efémero, finito, mortal. Façamos justiça ao escritor, que também no Campo viu misérias denunciáveis. Mas nem a sua panorâmica de Paris, nem as vistas de Tormes, encerram o problema: no limite, todo o espaço ocupado por homens se torna humano, deixa de ser selvagem ou civilizado, passa simplesmente a ser humano. E, enquanto espaço humanizado, não é senão organismo degradável, perecível. Hoje, os que da cidade migram para o campo em busca de tempo talvez busquem uma vontade de viver que o ruído das buzinas não permite como permitirá o ruído da passarada. E essa vontade de viver talvez seja uma fuga ao tédio, um tédio que a província desde cedo incute a quem nela nasce: aqui não se passa nada. Uma maçada. Mas tal como não se passa nada no campo, nada se passa na cidade, desde que abramos o pensamento a ambas as realidades constatando que tudo se resume a uma repetição fastidiosa de gestos, estações sobre estações, que não nos livrarão da tristeza, do pessimismo, da melancolia enquanto não adoptarmos aquela humildade de saber que a nossa grandeza está na nossa insignificância, que por ser tão curta a vida, tão passageira, a despeito de teses e teorias opostas, o melhor mesmo é aproveitá-la provando de tudo quanto há para provar. Não resumir a vida a uma mecânica de casa, trabalho, casa, trabalho, casa, trabalho... É isso, não é? A questão coloca-a Eça do seguinte modo: «Sendo tudo inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão, que podia importar a mais rutilante actividade ou a mais desgostada inércia?» E esta mostra-se como sendo a questão definitiva, a mais profunda e urgente, a verdadeira questão para a qual ninguém precisa de uma biblioteca de 30000 livros. Melhor fora que tivesse uma boa garrafeira, pão caseiro e bom queijo ou um chouriço. A Natureza encarregar-se-á de oferecer o resto, a pontuação certa. Isto se não dermos cabo dela antes de ela dar cabo de nós.

Sem comentários: