Campo ou cidade? A questão coloca-se como se fosse
obrigatório optar por uma das alternativas, como se não fosse possível
conciliá-las. O maniqueísmo nesta questão, como noutras, aliás, surge
contaminado por preconceitos e por ideias feitas. Os apologistas do campo são
quase sempre aqueles que não têm de sobreviver no campo, vivem na cidade
alimentando uma nostalgia bucólica de sossego, paz e silêncio, como se a vida
no campo pudesse ser reduzida à pureza do ar. Os do campo olham para a cidade
sonhando com riquezas e confortos, ambicionando aceder aos lustres da fama,
pensam na cidade como um mar de oportunidades. Até nelas naufragarem. Diz-se
que no campo se é livre e saudável, que na cidade se leva uma vida doentia de
servidão. Mas será mesmo assim? Eça de Queiroz (1845-1900), em A Cidade e as
Serras, obra póstuma de 1901, parece não escapar ao padrão nesta
divisão entre campo e cidade. A Paris de Jacinto, a que ele chama Civilização,
surge retratada no início como palco da «vantagem de viver». O campo é dos
brutos e das bestas, a cidade é dos homens cultos, das gentes instruídas, é de
uma cultura académica, livresca, de biblioteca que fascina até ao ponto de o tumulto se
tornar tédio absoluto. Também em Baudelaire encontramos o tédio como o sangue
que corre nas veias da cidade. O fascínio pelas máquinas, pela indústria, pelas
tecnologias, o gozo da novidade, das modas, a febre de ter e de aparecer, preenchem a agenda daquele que dela se torna escravo. Às tantas só ouvimos
Jacinto suspirar: que maçada! Tudo se torna repetitivo, a multidão esboroa-se
numa monotonia previsível, as máquinas falham, as tecnologias começam a
desiludir, entram em desuso, e as pessoas, sobretudo as pessoas, adquirem em
vida a lividez dos mortos. A cidade é uma paisagem de marcas, de montras, de
teorias inúteis, a erudição revela-se vazia, supérflua, até o amor se resume à
transacção comercial, uma infecção sentimental curável com distância, solidão,
exílio. Da «vantagem de viver» chegamos ao «embaraço de viver», sobretudo
quando a consciência se abre a uma contemplação que acabará por descobrir nas
avenidas e nos becos da Cidade um acumular de lixo e de miséria, exploração,
ruína, poluição: «E o Amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses
vastos armazéns com espelhos, onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao
arrátel, como a de vaca!» (p. 95) E isto é dito como se no campo não houvesse
casas de putas, o campo, esse paraíso na terra onde se conserva a doçura dos
gestos em gente bruta, animal, mas pura. Tretas! Tanto o campo como a cidade
têm as suas abundâncias, e parece inegável que nesta o tempo vale mais do que
naquele por serem acelerados os ritmos da vida. É o tempo, a experiência do
tempo, aquilo que melhor nos permite separar ambas as realidades. Porque quanto
ao mais são, o campo e a cidade, palcos onde os homens definham nesse processo
de viver que consiste em fracassar, ou seja, em subir o mais alto possível para
continuar constatando quanto se é ínfimo, porque se é efémero, finito, mortal. Façamos
justiça ao escritor, que também no Campo viu misérias denunciáveis. Mas nem a
sua panorâmica de Paris, nem as vistas de Tormes, encerram o problema: no limite,
todo o espaço ocupado por homens se torna humano, deixa de ser selvagem ou
civilizado, passa simplesmente a ser humano. E, enquanto espaço humanizado, não
é senão organismo degradável, perecível. Hoje, os que da cidade migram para o
campo em busca de tempo talvez busquem uma vontade de viver que o ruído das
buzinas não permite como permitirá o ruído da passarada. E essa vontade de
viver talvez seja uma fuga ao tédio, um tédio que a província desde cedo incute
a quem nela nasce: aqui não se passa nada. Uma maçada. Mas tal como não se passa
nada no campo, nada se passa na cidade, desde que abramos o pensamento a ambas
as realidades constatando que tudo se resume a uma repetição fastidiosa de
gestos, estações sobre estações, que não nos livrarão da tristeza, do
pessimismo, da melancolia enquanto não adoptarmos aquela humildade de saber que
a nossa grandeza está na nossa insignificância, que por ser tão curta a vida,
tão passageira, a despeito de teses e teorias opostas, o melhor mesmo é
aproveitá-la provando de tudo quanto há para provar. Não resumir a vida a uma mecânica de casa, trabalho, casa, trabalho, casa, trabalho... É isso, não é? A questão coloca-a Eça do
seguinte modo: «Sendo tudo inútil, e não conduzindo senão a maior desilusão,
que podia importar a mais rutilante actividade ou a mais desgostada inércia?» E
esta mostra-se como sendo a questão definitiva, a mais profunda e urgente, a
verdadeira questão para a qual ninguém precisa de uma biblioteca de 30000
livros. Melhor fora que tivesse uma boa garrafeira, pão caseiro e bom queijo ou
um chouriço. A Natureza encarregar-se-á de oferecer o resto, a pontuação certa. Isto se não dermos
cabo dela antes de ela dar cabo de nós.
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