quarta-feira, 27 de março de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #13


   Evitai o desespero. Se vos falo de coisas lúgubres, é porque a vida também se aprende a doer. Nem tudo são açúcares. Talvez não tenha ficado clara a inspiração de Unamuno no malogrado Manuel Laranjeira (1877-1912), poeta português que não cabe nas antologias. Deste poderia sugerir-vos alguns versos, ficções, peças. Mas há um ensaio em particular que merece bom acolhimento nas nossas estantes. Chama-se Pessimismo Nacional e, se bem sei, foi surgindo num jornal entre 1907 e 1908. Tenho a edição da frenesi, de Março de 2009. É vossa.
   O autor suicidou-se em 1912, inspirando desse modo o espanhol de Bilbau. Médico, republicano fervoroso, tentou arranjar estômago que aguentasse a república do seu tempo, pântano de esfomeados, sapal de analfabetos, servos das quadrilhas de privilegiados que no poder ou junto dele tratavam o povo como hoje parece mal tratar os cães. Com as devidas distâncias, podemos sempre sublinhar o mal que perdura na raiz: 

«(...) numa sociedade, onde o pensamento representa um capital negativo, um fardo embaraçoso para jornadear pelo caminho da vida; num povo, onde essa minoria intelectual, que constitui o orgulho de cada nação, se vê condenada a cruzar os braços com inércia desdenhosa, ou a deixá-los cair desoladamente, sob pena de ser esterilmente derrotada; num país, onde a inteligência é um capital inútil e onde o único capital deveras produtivo é a falta de vergonha e a falta de escrúpulos o diagnóstico impõe-se de per si».

   Contra isto, um Presidente da República ocupado a papaguear que somos os melhores em tudo, distribuindo abraços e beijinhos por desgraçados e miseráveis, é apenas merecida caricatura. Se tendes dúvidas, ide à pastelaria e folheai o jornal do dia. Ou sintonizai a televisão em qualquer canal a vosso arbítrio, que logo ides deparar-vos com o esterco onde o pessimismo frutifica.
   Impõem as boas práticas que ao pessimismo da razão receitemos o optimismo da vontade, não vá o coração ceder à tentação fatalista que ceifou este Laranjeira e tantos outros como ele. Sirvam antes as suas palavras de pré-aviso: «Vestimos à moderna, pretendemos viver à moderna, e pensamos e sentimos à antiga». Dando graças a Deus. Eis o melhor de um diagnóstico onde aos males e vícios não se aplicam virtudes nem remédios:

«O mal da sociedade portuguesa é apenas este: a desagregação da personalidade colectiva, o sentimento de interesse nacional abafado na confusão caótica dos sentimentos de interesse individual».

   Portanto, o mal está na ganância, na avidez, na sovinice, e nesta filha da puta de mania de pensar que a vida é eterna, subjugando assim o dia-a-dia a uma ideia de conforto e luxo que apenas hipoteca o futuro e nos desapaixona do presente. O mal está no individualismo cego, doença que tendemos a tratar com esmolas e campanhas de solidariedade. O mal está em sermos diariamente explorados, enganados, traídos, e vivermos bem com isso, como se fosse natural sermos explorados, enganados, traídos. Se calhar é.
   Ficai atentas, preveni-vos, minhas filhas, de todo e qualquer messias, onde há um homem haverá sempre a imponderável manifestação do desespero. E o tempo passa num instante. Ficai de atalaia e desconfiai, desde logo das seitas, das quadrilhas, dessas religiões erguidas por profetas movidos apenas pela hipocrisia, sejam elas da fé ou da economia. Vai dar ao mesmo.
   Por acaso nascestes portuguesas. Já alguém disse que por isso partis em desvantagem, mas que não seja uma fatalidade o lugar. Se a ignorância encolhe o território, estudai, aprendei, escutai, perscrutai na Natureza as cores, os sons, os cheiros que tornam válida a vida. Ides certamente encontrar recanto onde a inteligência possa ser apreciada, nem que seja onde eu encontrei o meu: em vós.

8 comentários:

manuel a. domingos disse...

Grande livro.

hmbf disse...

concordo

Célia disse...

Acho fantástico estar a construir esta herança para as suas meninas. Não se limita a uma listagem de obras preferidas, fica a relação do pai com o universo dessas obras e, sobretudo, a sua própria vivência que escorre das suas palavras.
Esmagador.

hmbf disse...

Obrigado Célia. A ideia é essa.

Anónimo disse...

Nem tudo está perdido: a Sociedade Portuguesa de Autores dá prémios a autores.

hmbf disse...

?

maria disse...

"Ides certamente encontrar recanto onde a inteligência possa ser apreciada, nem que seja onde eu encontrei o meu: em vós."

Que bela expressão de ternura, Henrique!!! (para não falar do magnífico testamento que estás a construir).

hmbf disse...

Abraço. :-)