Ainda se lembrava dos seus tempos de rapaz.
Quando era tudo de perfil. Nem podia ser
de outro modo: de perfil e em diorite
como nos retratos do Império Antigo. Muitos
iriam acolher depois os ritos do primitivo
estigma. Nos parques, na penumbra dos relvados,
ficou dessa queimadura uma legenda. Alguns
resistem. Paralisa-os a vertigem de uma estreita
afeição. No limite do conhecimento, a tremer
de alegria, encontram aquilo que
tinha sido esquecido. A cabeça entre as pernas
nem sempre se distingue de um sussurro
de lâminas. A música de tal desígnio percute
nas sílabas todas do inominado canto. Às vezes
por um punhado de lágrimas, equívoco maior.
É claro que a iniquidade continua impune.
Eduardo Pitta (n. 1949), in Arbítrio (1991), copiado de Desobediência.Poemas Escolhidos (2011). De Poesia Escolhida (Círculo de Leitores, Julho de 2004)
para Desobediência. Poemas Escolhidos (Dom Quixote, Fevereiro de 2011) são
várias as cisões, alguns poemas desaparecem por completo, de outros resta uma
curta percentagem de versos, há deles que foram ligeiramente mudados,
observam-se alterações ao nível da pontuação, num processo rigoroso de revisão
e depuração que acompanha de há muito o labor poético de Eduardo Pitta. Mas a
segunda recolha também acrescenta dois poemas em prosa a uma poesia fixada entre
1971 e 1996, podendo estes parecer estranhos no contexto de uma poesia que se
distingue pela forte contenção narrativa. Ainda que no livro de estreia,
intitulado Sílaba a Sílaba (1974), ressoem vivências moçambicanas, elas surgem
invariavelmente tolhidas por um fulgor imagético regulado pela elipse e por uma
economia vocabular que coloca no tabuleiro da leitura as regras do enigma. Por
entre as sombras de uma história marcada pelo exílio, pelo sentimento apátrida,
pela ausência, por «muros de silêncio», pela distância, vislumbramos o desejo
como motor de uma escrita que pretende preservar um amor desobediente, um «amar
desordenadamente». Escrita do corpo, intensa nos domínios do erótico, suficientemente
clara para que a julguemos erigida contra a hipocrisia reinante, esta poesia
exprime as feridas de uma história pessoal sem dessangrar a intimidade.
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