sexta-feira, 14 de junho de 2019

PEQUENO ROTEIRO CEGO

Tal como me aconteceu com outros poetas da mesma linhagem, ouvi falar pela primeira vez de Levi Condinho (n. 1941) na antologia Sião (frenesi, Fevereiro de 1987). Uma nota biobliográfica que apontava a «herança beatnick» aguçou a curiosidade, embora hoje me surja algo deslocalizada tal ascendência. Condinho tinha 6 anos de idade quando o movimento (grupo?) imortalizado por Jack Kerouac (1922-1969) no romance On the Road (1957) vagueava freneticamente por uma América saída da II Grande Guerra, vivia num país amordaçado pela censura política, cultural e religiosa, com a (des)vantagem de ter nascido em meio rural (Bárrio, Alcobaça). Quando Kerouac se lançava na escrita de On the Road, Levi Condinho entrava para o Seminário de Santarém. Só mais tarde descobriu o jazz e ainda mais tarde a poesia, dados biográficos que o próprio revela no final deste Pequeno Roteiro Cego (Abysmo, Abril de 2019), antologia organizada por António Cabrita e Miguel Martins. Nessa descoberta tardia, acelerada no pós revolucionário, o que possa ecoar de beatnick é banda sonora e utopia (no único sentido que a palavra me merece, o melhor, que é o de horizonte desejado).
   O prefácio assinado por António Cabrita contribui para uma mais clara contextualização do ambiente geracional em que esta poesia surgiu: «os poemas de Levi Condinho não derivam de demoradas e sonâmbulas meditações, resultando ao invés de encontros com entes que lhe interceptaram o acaso dos dias. Esses encontros podem ser musicais, provirem da leitura ou de outra ordem emocional, e devemos assentar na ideia de que esta é uma poesia da imanência e da intercepção entre a vida e as manifestações com que a pauta do acaso lhe suscitou o testemunho de um trânsito» (p. 10). De facto, mesmo o leitor menos atento não deixará de se espantar com o acumulado de referências, mormente musicais, que nos poemas aparecem sob a forma de motivo e de alusão, mas talvez seja justo reconhecer, no que à questão musical diz respeito, que estas referências não se esgotam em si mesmas, constituindo-se antes como pontes sob as quais apreendemos, no reflexo das águas, temas diversos. 
   Seria interessante aprofundar a relação aqui estabelecida entre a música e a experiência do sagrado, mais ainda tendo em conta as raízes católicas do poeta em causa. Entre a música e Deus funda-se, mais do que um diálogo, a experiência de uma manifestação: «Bach regressa sempre como se fora Deus» (p. 49). Este verso, remate isolado no poema Ranhuras, dá bem conta das duas margens entre as quais discorre o caudal do tempo, nele seguindo, a esmo ou vigiada, a embarcação da vida: «o homem vai no transporte da sua vida / e a escrita faz-se no andar do transporte» (p. 42). Há entre a vida e o acto de escrevê-la uma proximidade que por vezes redunda em biografia, sendo exemplo claro deste movimento poemas tais como Canto Ecuménico (a descoberto do jazz em plena casa de Deus), Ano Bom (sobre as noites de infância) ou mesmo a crítica de tom geracional sugerida em Ginsberg Morreu
   Memória e biografia contribuem, assim, para uma poesia de “instantâneos” e de “inventários” diversos, onde entre trânsitos, viagens, deslocações próprias dos movimentos da existência, apreendemos certo olhar melancólico e voluntariamente solitário: «se perguntarem por mim / diz-lhes que continuo no meio dos homens / cheio de solidão / mas é aí que quero estar» (p. 28). Num outro poema, intitulado Luigi Nono «hay que caminhar» soñando, lê-se: «vivo em cada traço de cometa ou fragmento de solidão» (p. 70). Apesar de disfarçada pela derisão e pela agitação de referências, esta componente emocional não foi varrida dos poemas. Surge até transformada numa espécie de “política de vida”, partilhável em breves manifestos sob os quais ressoa a melodia de “Give me the Simple Life”. 
   Também não é de descurar a veia naturalmente experimental, por assim dizer, que ressalta no poema NIN, mas se expressa sob formas menos óbvias na insistente busca de uma musicalidade para os «mistérios da terra». Estes decorrem ainda de um olhar contemplativo sobre a paisagem natural: «Contemplo a folha da palmeira / a vagem da ervilha o bico do pintassilgo / os lábios da criança a célula do mar» (p. 70). Ou, no díptico José Aurélio Uma cosmologia adivinhada: «essa tranquila respiração dos regatos / no arco perfeito do amor consumado / brando desafio à harmonia da esfera / réplica de astros ao alcance da mão» (p. 74). Julgo que o melhor elogio que podemos fazer a esta poesia é o de aceitá-la enquanto hino à vida, não desprovido de irrisão quando tal se justifica, mas principalmente concentrado na exaltação de tudo quanto propicia prazer no decorrer da viagem. 

1 comentário:

teresa disse...

este puto é mui inteligente, como diia a minha mae