Um ano após “A Paz”, o Teatro da Rainha regressou à
comédia de Aristófanes através da adaptação que o dramaturgo francês Bernard
Chartreux preparou para "As Aves". Pelo meio, já este ano, devemos assinalar a
parceria com o Teatro Nacional de São João na montagem de “O resto já devem conhecer
do cinema”, recuperação de “As Fenícias”, de Eurípedes, assinada por Martin
Crimp. Esta opção pela revisitação do teatro clássico manifesta uma atitude
programática que pode ser entendida de várias formas. Desde logo, assinala a
preferência por um teatro que não surja desligado da sociedade à qual se
dirige. Tanto ontem como hoje estas peças mantêm um elo com a realidade social,
política, cultural, que procura respeitar a capacidade que a massa a que
chamamos público possa ter de reflectir o seu tempo sem lhe apagar a História.
Numa época especialmente dada a revisionismos de toda a
ordem é relevante esta capacidade de vincular a arte à História sem desleixar
aspectos críticos e poéticos, de liberdade interpretativa, de observação
lúdica, de pura efabulação. Trata-se de um teatro que insiste no seu papel
socialmente interventivo, chamando inclusive para palco um grupo de amadores
que de algum modo incorporam uma ideia de povo à qual a mensagem se direcciona.
Assim como na Grécia antiga o teatro tinha preocupações
pedagógicas, exercitando a crítica do quotidiano e apelando à reflexão
colectiva, também nestas adaptações encontramos, misturadas com o natural
entretenimento que a comédia propicia, os mesmos cuidados. O encenador Fernando
Mora Ramos fala mesmo de uma revalidação do «teatro directamente político pela
via do cómico», devendo aqui entender-se por político o que de nobre possa
perdurar no conceito.
Curiosamente, é a degenerescência desse conceito de “política”
que está em causa no original de Aristófanes e se retoma na “Cidade dos
Pássaros”. Evélpides e Pistetero, os dois agastados atenienses que buscam um
mundo melhor, distanciando-se de uma Atenas decadente, podem ser entendidos
nessa necessidade inicial como produtos de um momento de decepção para com a
pólis, desconfiando da democracia, desiludidos com os oportunistas que tomaram
conta da vida pública, eles próprios em vias de se transformarem naquilo que os
decepciona e desilude. Não é exactamente assim que tem sucedido com inúmeros
movimentos de “cidadania política” a cavalgarem o discurso do ódio à política e da
desconfiança nos políticos, do medo das políticas e da desilusão com o Estado?
Que a utopia descambe numa distopia não admira, é essa a
ordem natural das coisas quando a meta final é o poder pelo poder. A ambição desmesurada
de Pistetero ao convencer Tereu, mortal metamorfoseado em poupa, de que sobre
os deuses devem reinar as aves presta-se a inúmeras alusões, associações, interpretações.
Cada elemento da assistência que faça as suas. Se no início o desejo de
felicidade parece ser legítimo, pelo meio a transformação dessa hipótese de felicidade
num reinado manipulador coloca tudo em causa, desde a hierarquia entre homens,
pássaros e deuses à desmesura de um projecto imperialista que, como todos os
congéneres, assenta inevitavelmente na miséria da maioria para fausto de uns
poucos.
O actor Fábio Costa vai excelente no papel de Pistetero, impressionando
tanto pela energia como pelo ar alucinado que oferece à personagem. Menos
interveniente nesta adaptação do que no original, Alexandre Calçada encarna
igualmente bem Evélpides. Mas onde melhor se revelam os seus dotes caricaturais
é no Hércules abrutalhado que surge mais para o fim. Manuel Freire, o da "Pedra
Filosofal", aparece travestido de Camões para nos fazer lembrar o estado das
artes em geral, que Sophia já tinha de algum modo ilustrado no poema "Camões e a
Tença". Venâncio Calisto é um Prometeu dissimulado, afastado dos deuses como de
Atenas se afastou Pistetero. Também o seu projecto de oferecer o fogo aos
homens se revelou desastroso.
São muitas as figuras e os figurões que desfilam num cenário
simples, mas atraente, com figurinos belíssimos no que toca ao coro de aves com
movimentos próprios de aves, onomatopeias próprias de aves, mas com
características comportamentais típicas de homens que facilmente com aves se
confundem. Entre estas, a rouxinol interpretada por Mafalda Taveira é
particularmente cativante. O seu canto oscila entre o lirismo de uma esperança
encantadora e o lamento da tragédia anunciada. O projecto d’ “A Cidade dos
Pássaros” redunda nesta indefinição, na medida em que procura estabelecer-se
segundo os parâmetros de uma cidade dos homens, esses que tudo conspurcam e
destroem com ambições desmedidas e ganância sem fim, esquecendo a mais
invejável virtude dos pássaros: o voo livre.
Que da muralha erigida entre homens e deuses venham a sobrar apenas cacos, não espanta. Mas o texto é meramente preventivo. A verdade nua e crua tem as suas muralhas bem altas e intransponíveis, todas elas erigidas na terra para separarem já não os homens dos deuses, mas os homens de outros homens. Talvez no fim acabemos a falar aos peixes como o dos sermões. Se ainda houver peixes.
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