sábado, 6 de julho de 2019

A CIDADE DOS PÁSSAROS




Um ano após “A Paz”, o Teatro da Rainha regressou à comédia de Aristófanes através da adaptação que o dramaturgo francês Bernard Chartreux preparou para "As Aves". Pelo meio, já este ano, devemos assinalar a parceria com o Teatro Nacional de São João na montagem de “O resto já devem conhecer do cinema”, recuperação de “As Fenícias”, de Eurípedes, assinada por Martin Crimp. Esta opção pela revisitação do teatro clássico manifesta uma atitude programática que pode ser entendida de várias formas. Desde logo, assinala a preferência por um teatro que não surja desligado da sociedade à qual se dirige. Tanto ontem como hoje estas peças mantêm um elo com a realidade social, política, cultural, que procura respeitar a capacidade que a massa a que chamamos público possa ter de reflectir o seu tempo sem lhe apagar a História.



Numa época especialmente dada a revisionismos de toda a ordem é relevante esta capacidade de vincular a arte à História sem desleixar aspectos críticos e poéticos, de liberdade interpretativa, de observação lúdica, de pura efabulação. Trata-se de um teatro que insiste no seu papel socialmente interventivo, chamando inclusive para palco um grupo de amadores que de algum modo incorporam uma ideia de povo à qual a mensagem se direcciona.



Assim como na Grécia antiga o teatro tinha preocupações pedagógicas, exercitando a crítica do quotidiano e apelando à reflexão colectiva, também nestas adaptações encontramos, misturadas com o natural entretenimento que a comédia propicia, os mesmos cuidados. O encenador Fernando Mora Ramos fala mesmo de uma revalidação do «teatro directamente político pela via do cómico», devendo aqui entender-se por político o que de nobre possa perdurar no conceito.



Curiosamente, é a degenerescência desse conceito de “política” que está em causa no original de Aristófanes e se retoma na “Cidade dos Pássaros”. Evélpides e Pistetero, os dois agastados atenienses que buscam um mundo melhor, distanciando-se de uma Atenas decadente, podem ser entendidos nessa necessidade inicial como produtos de um momento de decepção para com a pólis, desconfiando da democracia, desiludidos com os oportunistas que tomaram conta da vida pública, eles próprios em vias de se transformarem naquilo que os decepciona e desilude. Não é exactamente assim que tem sucedido com inúmeros movimentos de “cidadania política” a cavalgarem o discurso do ódio à política e da desconfiança nos políticos, do medo das políticas e da desilusão com o Estado?



Que a utopia descambe numa distopia não admira, é essa a ordem natural das coisas quando a meta final é o poder pelo poder. A ambição desmesurada de Pistetero ao convencer Tereu, mortal metamorfoseado em poupa, de que sobre os deuses devem reinar as aves presta-se a inúmeras alusões, associações, interpretações. Cada elemento da assistência que faça as suas. Se no início o desejo de felicidade parece ser legítimo, pelo meio a transformação dessa hipótese de felicidade num reinado manipulador coloca tudo em causa, desde a hierarquia entre homens, pássaros e deuses à desmesura de um projecto imperialista que, como todos os congéneres, assenta inevitavelmente na miséria da maioria para fausto de uns poucos.



O actor Fábio Costa vai excelente no papel de Pistetero, impressionando tanto pela energia como pelo ar alucinado que oferece à personagem. Menos interveniente nesta adaptação do que no original, Alexandre Calçada encarna igualmente bem Evélpides. Mas onde melhor se revelam os seus dotes caricaturais é no Hércules abrutalhado que surge mais para o fim. Manuel Freire, o da "Pedra Filosofal", aparece travestido de Camões para nos fazer lembrar o estado das artes em geral, que Sophia já tinha de algum modo ilustrado no poema "Camões e a Tença". Venâncio Calisto é um Prometeu dissimulado, afastado dos deuses como de Atenas se afastou Pistetero. Também o seu projecto de oferecer o fogo aos homens se revelou desastroso.



São muitas as figuras e os figurões que desfilam num cenário simples, mas atraente, com figurinos belíssimos no que toca ao coro de aves com movimentos próprios de aves, onomatopeias próprias de aves, mas com características comportamentais típicas de homens que facilmente com aves se confundem. Entre estas, a rouxinol interpretada por Mafalda Taveira é particularmente cativante. O seu canto oscila entre o lirismo de uma esperança encantadora e o lamento da tragédia anunciada. O projecto d’ “A Cidade dos Pássaros” redunda nesta indefinição, na medida em que procura estabelecer-se segundo os parâmetros de uma cidade dos homens, esses que tudo conspurcam e destroem com ambições desmedidas e ganância sem fim, esquecendo a mais invejável virtude dos pássaros: o voo livre.


Que da muralha erigida entre homens e deuses venham a sobrar apenas cacos, não espanta. Mas o texto é meramente preventivo. A verdade nua e crua tem as suas muralhas bem altas e intransponíveis, todas elas erigidas na terra para separarem já não os homens dos deuses, mas os homens de outros homens. Talvez no fim acabemos a falar aos peixes como o dos sermões. Se ainda houver peixes.


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