Desconheço a origem da palavra bluff, que segundo o
Wiktionary talvez esteja no termo bluffen (fanfarronice, alarde), mas pelo que obriga
a necessidade aprendi a detectá-lo no olhar dos parceiros de cartadas. Para o
poker, por exemplo, o bluff está como a simulação na jogada de futebol, é pura
ironia, dar a entender algo e fazer o seu contrário. Várias circunstâncias da
vida obrigam-nos a estar atentos ao bluff, quando não a tirarmos proveito dele.
A carga ética negativa que poderia ter, assemelhando-se à hipocrisia,
transforma-se numa espécie de ferramenta, escudo de defesa no mundo cínico das “notícias
falsas”, de todo o tipo de abusos e de manipulações, seguidas de proverbiais
perdas de memória quando toca ao esclarecimento da verdade. Daí que o bluff não
se oponha à verdade, muitas vezes é o estribo onde a investigação se apoia. O “cogito,
ergo sum” cartesiano, por exemplo, é bluff em defesa da racionalidade, matéria
que nos levaria a uma discussão infindável se a tal estivéssemos dispostos.
António Ferra (n. 1947), autor de obra multidisciplinar iniciada
na década de 1970, optou por dar o título de Bluff (Douda Correira, Março de
2019) a um dos seus mais recentes livros. Em literatura o bluff pode também confundir-se com o fingimento pessoano, porventura assumido nestas narrativas
breves a partir da epígrafe tomada de empréstimo ao modernista Almada
Negreiros. Tal como acontecia em Marias Pardas (& etc, Março de 2011),
outro livro do autor onde o poético e o narrativo se misturam, neste o
carácter lúdico da linguagem é logo detectável nos inúmeros jogos fonéticos,
trocadilhos, paranomásias. O primeiro texto intitula-se “Entrudo são”, o último
chama-se “Equílogo” (por causa de um cavalo que entra pelo meio). A verdade é
que a essência destes textos está em serem o nada com que se parecem,
divertimentos carregados de ironia onde o mundo actual surge pintado em figuras
tipo da nossa sociedade tais como «os youngmen de fato preto» ou «os
funcionários do bluff», contando-se entrementes a história de uma mulher, de
seu nome Graziela, e seu marido, Jacinto.
Ao contrário do que sucede nas fábulas, aqui as
personagens são humanos com comportamentos animais. Mas de modo semelhante à
fábula também estas narrativas apresentam no final uma espécie de moral,
espécie porque o que enunciam entre parêntesis são falas, vozes, diálogos, cuja
principal característica é a sua absurda veracidade. Exemplo:
De toda a água me rio
Graziela precisava de uma certidão de emagrecimento,
documento imprescindível para voar low cost. A senhora do balcão de atendimento
sugeriu-lhe que fizesse tudo online, e que comesse apenas legumes, uma só peça
de fruta, duas bolachas integrais e, sobretudo, que bebesse muita água, toda a
água de um rio para perder o peso dos dias e das noites e para expelir na urina
os abusos que sofria.
E que voltasse ao fim de cinco dias inúteis.
[— Já não faço nada online, é tudo bluff, desde que nasceu a
minha filha deixei-me disso, nem mesmo sexo virtual, tenho medo de engravidar
outra vez.]
O aspecto cómico destes textos está na capacidade que
revelam de caricaturar os hábitos (preferencialmente os maus) e os costumes da
vida moderna, dita cheia de pressas para um fim seguramente universal e
claramente passageiro. Ao lê-los lembramo-nos das contradições que nos
contornam a negro dias e noites, pensamos na pertinência de uma antimoral
que nos desobrigue de afazeres esgotantes e esgotados de humanidade. Pelo
caminho da ridicularização, estes textos denunciam a bizarria do “modo
funcionário de viver”, retirando a gravata à prosa e brincando alegre e
livremente com as palavras. Aceitam até certa ingenuidade nos comportamentos das personagens, preferindo observá-las a censurá-las. Não há mal algum em chamar-lhes poesia, dessa que
tantas vezes se confunde com a pequena narrativa reclamado para si mesma o
direito a não ser só uma coisa nem outra, ser livre, sem rótulo nem arrumação.
[—Tens as mãos transpiradas. Passa-se alguma coisa?
— Não, não, é só esta desumanidade que se entranha no
corpo]
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