Se estenderdes todos os livros ao sol, e deixardes a
neve, a chuva e os insectos agirem sobre eles durante certo tempo, nada deles
há-de ficar.
Salvo raríssimas excepções, começamos por vê-los no papel
de criminosos. Só mais tarde nos aperceberemos dos crimes contra eles
cometidos. O índio persegue, rapta, viola, assassina, é o monstro atroz por
detrás de todas as fobias, colecciona escalpes, envenena, intoxica, tem poderes
mágicos, negros, diabólicos. Na escola estranhamos a origem etimológica do
termo, equívoco de navegadores tomados por heróis, símbolos arcaicos de uma
cultura erguida através da exploração, da escravatura, da dizimação do outro em
busca de ouro. Passamos a desconfiar dos filmes, realizados quase
invariavelmente a partir de uma perspectiva missionária. O índio era o
selvagem, não tinha cultura, precisava de ser aculturado. Que representação faríamos do índio se tivesse sido ele a inventar o cinema? A
resistência do índio à aculturação leva-nos então a questionar a história que
nos foi contada. Outrora predadores, passamos a vê-los no lugar da presa. Corremos
o risco da simplificação se julgarmos pura aquela condição desnudada. Onde há
homens, minhas filhas, não há pureza alguma, pois ao homem foi concedido, antes
de qualquer outro, o dom de conspurcar. E o índio é, antes de mais, homem.
Chamamos
inteligência à capacidade adquirida de vergar o outro à nossa fome, partimos à
conquista, transcendemos as barreiras do medo, injectamos ódio no sangue e
fixamo-nos entre muralhas. Onde há homem, haverá sempre este impulso de morte.
Mas nem todas as pirâmides são de cinza e de pedra, há delas que se erigem no
ar, sustentadas pela respiração do olhar contemplativo, pelo respeito às forças
naturais. Há delas que não carecem de civilização, e por isso mesmo se mantêm
mais próximas da origem sagrada que a vida inspira. “A Fala do Índio” canta-nos
essa origem, recuperando e conservando vozes que ao longo dos anos vão ecoando no vento. A
verdade é que fomos nós que os exterminámos e não o contrário, talvez por desde
muito cedo termos pressentido que não convinha nada ao chamado progresso aquela
teimosa oposição à propriedade privada. Fomos nós quem aniquilou a cultura do
índio e não o contrário, pois temos uma cultura muito dada à aniquilação de
todas as outras que se lhe oponham. A premissa é genesíaca, ide e dominai o
outro, o vosso sucesso será tanto maior quanto maior for o vosso poder de
aniquilar. Assim foi ao longo dos séculos, devastando terras, extinguindo fauna e
flora, meios de subsistência, impondo com tácticas maquiavélicas o crucifixo da
servidão onde havia a Dança dos Espíritos. E se Deus não dança, minhas filhas,
para quê o baile?
Sobre o índio pesam dois pesadíssimos fardos, o do
fascínio exótico e o do medo. De onde vem este medo? Percebê-lo-eis se
escutardes com atenção o chamamento. A fala do índio atrai-nos para o interior
da floresta, aí tudo é novo e selvagem, tudo é genuíno e, por isso mesmo,
temível. Nesse labirinto sentimo-nos como o insecto apanhado na teia, perdemos o (auto)domínio, somos obrigados a aceitar a nossa fragilidade, ficamos
desprovidos de armas que nos defendam do acaso e do acidente. Os mistérios da floresta são
desconfortáveis para quem saiba apenas caminhar com bússolas e mapas em
estradas abertas. O índio diz que a rocha fala, que a pedra tem vida, que a
floresta é um lar, o índio diz-se parte integrante da floresta, para ele deixa
de haver um eu e um tu, somos nós, a unidade é o colectivo, o índio
escuta, o branco tagarela, a lei do índio é a respiração do canto, para o índio
a morte não existe, para o branco a morte garante servidão em vida na
perspectiva de uma plenitude na morte, o paraíso do índio é na Terra, no
espírito da Terra, o paraíso do branco é o desejo recalcado de mil virgens.
Temos tudo a aprender com esta fala se lhe abrirmos os ouvidos e escutarmos com
atenção, em silêncio: «Acreditai que por mais miseráveis que a vossos olhos
sejamos, nos vemos todavia como gente mais feliz do que vós, e isto por nos
contentarmos com o pouco que temos… ficareis profundamente desiludidos se
pensardes convencer-nos de que a vossa terra é melhor do que a nossa. Pois
sendo França, conforme dizeis, um pequeno paraíso, será sensato abandoná-la?»
Assim falava um chefe micmac no ano de 1676. Passados séculos, que temos
hoje? Os nossos paraísos transformados em infernos insustentáveis, andamos a
pôr pensos rápidos em chagas gangrenadas. Continuamos a devastar invadindo o
outro para lhes impormos o nosso paraíso, a nossa rica vida, o nosso sufoco.
Respirai, pois, o ar desta voz selvagem, na esperança de que podeis purificar
um pouco vossos corações poluídos pelos estranhos costumes das culturas que se
autoproclamam superiores, convencidas de si mesmas contra os factos que apenas comprovam
corações tristes, mentes doentes, acções desesperadas. Coligiu Teri C. McLuhan,
traduziu Júlio Henriques, publicou a Fenda em Julho de 2000.
2 comentários:
Henrique, já reli este teu texto várias vezes porque me apazigua e por ele te agradeço, sim?
Obrigado. Abraço e saúde, h
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