Por debaixo da betonilha de cimento a erva
aguarda uma fresta por onde possa respirar. De cada vez que a terra treme, a
erva agita-se, fica num frenético estado de excitação. Pressente que será essa
a sua oportunidade de subir pela mínima fenda e tornar-se caminho. À
superfície, porém, o lixo acumula-se. Já não é apenas o cimento que suporta vestígios
de soalho, arrancado pelas unhas do tempo e por mãos gatunas como à carne
subtraímos pústulas de feridas abertas. É o lixo acumulado ao longo dos anos, ideias
feitas, preconceitos, estereótipos, lugares comuns, mesmo os menos suspeitáveis.
Terrível matéria é a vulgaridade dos sonhos,
fé martelada contra madeira podre. Há quem se convença de uma eternidade
algures submersa entre concepção e morte, aproveitando para evocar espíritos e
perfurar com os olhos o corpo de quem caminha a esmo pelos corredores vazios e
abandonados da memória. O quebranto enfraquece o corpo e então sente-se a fera
como o edifício emparedado, muros de tijolo tapam todos os orifícios para que
nem ar nem luz insuflem as salas da alma.
Os homens erguem catedrais nos lugares mais
estranhos e improváveis. Ali, onde o génio aproveitou do mar as marés de fantasia,
restam agora vestígios de crenças e a erva a sufocar sob entulho. Numa das
divisões da casa sentimos a presença física de um fantasma. Garrafas vazias
sugerem bocas sedentas, festa, alegria. Mas o pó que envolve o vidro afasta de
imediato qualquer hipótese de vida. Adiante os loucos ou alguém mais louco que
os loucos tenta livrar-se dos males injectando nas veias o químico da verdade,
para que no horizonte de pedra a vista surja expurgada de melancolia.
A esta hora, desconfio, nada haverá de mais
saudável do que a tristeza que assalta os nervos. Então escrevo: se um mapa
houvesse para nos guiar dentro dos labirintos da dúvida, não teria tanta graça
cortar a direito, estacionar em lugar proibido, invadir propriedade privada. Sempre
que a tentação do crime nos assalta, por exemplo, quando fugimos do pânico
gerado na cervical e logo espalhado pelo braço dormente com que semeamos
palavras a noite inteira, rodeados de fantasmas percebemos quão ineficaz será o
feitiço, quão inútil o medo, quão malbaratadas a paixão e a alegria que cintilam
nos olhos do acaso.
E o outro surge resplandecente no barco que
brilha, pequenas e brevíssimas luzes pontuam a noite caída, já nada nos devem e
nós a elas nada devemos senão o prazer de olhar. É nesse instante, nesse
preciso instante, que a erva irrompe e levanta cimento e desfaz-se do excesso,
e varre o lixo e se mostra com a força de uma raiz antiga. É nesse preciso
instante que a erva se enche de luz e ar e rebenta como a mais frondosa das
árvores. E nós então imitamos na caminhada o voo dos pássaros, como que
pendurados nos ramos da erva, crianças vivas nos braços de uma mãe sorridente.
Onde havia uma casa há agora um abrigo. Ao
fundo da avenida, um mar imenso de luminoso silêncio.
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