quarta-feira, 4 de setembro de 2019

CALL CENTER (2.ª EDIÇÃO)



   Comecei a ler o Carlos Alberto Machado nos weblogs, há uns anos valentes. Só depois encomendei duas peças de teatro por ele assinadas: “Restos. Interiores” (2002) e “Aquitanta”(2003). Por volta de 2013 conhecemo-nos pessoalmente na apresentação de “Confissões”, do José Ricardo Nunes, tendo então o Carlos me desafiado a enviar um original para a Companhia das Ilhas. Reuni algumas histórias que andavam perdidas na gaveta e enviei-lhe o livro. 
   A primeira edição do “Call Center” saiu em Junho de 2014, com uma ilustração da Bárbara Fonseca na contracapa. Esgotados os 100 exemplares, passados cinco anos o Carlos voltou a desafiar-me para uma reedição. Revi os textos anteriormente publicados e acrescentei ao conjunto dez histórias novas. 
   Como recentemente expliquei em Vila do Conde, estas histórias têm em comum personagens fragilizadas por problemas de comunicação geradores de equívocos vários. As chamadas deste “Call Center” resultam todas avariadas, sendo que na sua maioria surgiram, de facto, de seis meses de trabalho num inferno que fui amenizando compondo efabulações para os nomes de pessoas com quem comuniquei ao ouvido sem fazer a mínima ideia de quem eram. 
   Sobre este livrinho, escreveu à época, no Expresso, o José Mário Silva: «No universo de H.M.B.F., o espelho que reflecte a sociedade partiu-se em mil estilhaços, e é sobre essas arestas de vidro que as personagens caminham, cortando-se e sangrando, mais impulsionadas pelo espanto do que pela revolta, seguindo ainda assim em frente, através do negrume. As incongruências da vida gregária (na família, no bairro, no país) e a entropia social geram uma energia turva que explode através de situações absurdas» (Expresso/Atual, 2 de Agosto de 2014). 
   Deixo aqui, a título de exemplo, a micronarrativa seleccionada agora para texto de badana. Nela entenderão a gozada glosa das estúpidas hierarquias que até entre poetas se instauram:

O POETA PSICOSSOMÁTICO


   Há os poetas grandes, cimeiros, gigantescos, colossais, etc. Este de que vos falo era de tal forma titânico que precisava de um miradouro para poder contemplar a sua própria sombra. Era um poeta psicossomático.
   Certo dia penetrou a amante com o seu olhar mais de poeta psicossomático e disse-lhe: a tua saliva é o adubo da minha voz. Nesse mesmo instante, a boca transformou-se-lhe num vaso cheio de terra e cresceram-lhe plantas nos dentes.

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