Em
quase tudo podemos encontrar um lado bom e um lado mau. Não em tudo, como
vulgarmente se diz. Não sei o que possa haver de bom, por exemplo, na perda de
um filho. Mas na generalidade das coisas a gente consegue encontrar dimensões
aparentemente contraditórias, os pilares sobre os quais a realidade vai sendo
erguida. Penso nisto a propósito do regresso ao Facebook, depósito de lixo, execrável
máquina de propaganda ao serviço da desinformação e da mentira, motor gerador
de equívocos. O Facebook é como aquelas máquinas de alongamentos num ginásio,
obriga-nos a um esforço tremendo, tantas vezes inglório, mas que de algum modo
ajuda a tonificar os músculos do debate e da discussão. Ou ficamos sem
paciência nenhuma ou ficamos com uma paciência de Jó. Este é o lado mau, este é
o lado bom. Como preferirem. Mas há um lado inegavelmente bom nestas redes comunicacionais, um
lado inesperado e singelo que passa quase despercebido. A partilha de instantâneos,
por exemplo.
Para o caso, roubo duas imagens. Aquela ali ao lado foi partilhada
pelo meu amigo António Ramalho, a outra mais abaixo foi partilhada pela Marina Tadeu. Não
sei porque gosto tanto destas duas imagens, é-me difícil exprimi-lo. Tenho a
certeza que me transmitem sensações muito fortes, mas como expressá-las?
Ouvimos dizer, vezes sem conta, que vivemos num mundo de imagens, que toda a
comunicação está hoje intoxicada pela imagem. Este discurso é em si mesmo
altamente tóxico, já que as imagens só intoxicam quem não tiver filtros para
elas. E os filtros, creio, mantêm a origem. A palavra ajuda a filtrar a imagem,
na medida em que lhe oferece um sentido mesmo quando o sentido da imagem é a
total ausência de sentido. A palavra transforma a imagem em linguagem. Na primeira das imagens aqui partilhada podemos
observar muita coisa, podemos concentrar-nos no enquadramento, falar do jogo de
luz e sombra, podemos formular todo um discurso sobre o contraste do rosto
pintado na parede e do corpo físico sentado ao pé desse rosto. A realidade
mistura-se com a ficção nesta imagem, o equilíbrio impressiona-me por sentir
ali alegria e tristeza, transformação, o prazer, representado pela bebida, a
distanciar-se do corpo como de um corpo se distancia a vitalidade. Aquele homem
ali sentado é uma espécie de sombra do rosto velho, mas feliz, desenhado na
parede, sabemos que aquele homem está a transformar-se no rosto que o encima.
Há uma espécie de projecção, continuidade.
Nesta outra imagem temos já a morte representada por um
acumulado caótico de lápides. Tudo quanto sobrará de nós está ali, com um
pormenor altamente dignificante. O corpo físico que na ponta superior direita
olha para o alto. Quase não se vê, mas está lá. Este resquício de vida quase
imperceptível num aglomerado de morte faz-me pensar em muitas coisas, a mais
forte das quais é o modo como interpretamos a nossa passagem pelo tempo e a
relação que mantemos com aquilo que passou e se perdeu. Há pessoas que falam da
actualidade comparando-a com o passado, sem saberem minimamente como era a
actualidade do tempo a que se referem. O que sabem foi o que sobrou, trabalho
de conservação, o que têm desse passado é já uma construção histórica que excluiu,
varreu, limpou. O passado chega-nos sempre desinfectado, expurgado, aliviado do
lixo dos dias que tanto nos atrofia no presente. Mesmo agarrando numa arte
relativamente recente como o cinema, para um filme de génio exibido em 1950 a
gente encontra milhares de filmes de merda estreados nesse mesmo ano. A
História tende a esquecer a merda, construindo um passado de sonho para
nostálgicos e saudosistas. Seria altamente pedagógico encontramos uma História
da Merda para ficarmos mais cientes do que andamos a fazer no mundo, não de
agora, não de ontem, mas de sempre. Desse lado rasurado pelo tempo, todo esse
universo esquecido, apagado, enterrado, cremado, ressuscitam por vezes breves
ecos. Estes dois instantâneos fazem-me pensar nisso mesmo. De uma forma talvez
involuntária captam com extraordinária argúcia a linguagem do tempo. Acho que é
isso que me toca tantos nestas duas imagens. Ou então são apenas meras imagens
sem significado nem sentido. Mas se assim for, por que resolveu alguém partilhá-las? E por que me dizem tanto? Alguém viu nelas algo de especial, eu também vejo nelas algo de especial. Esse ver denota já um discurso, isso é
reconfortante num mundo como o de hoje. Que alguém consiga falar olhando. Cliquem
para lerem melhor.
8 comentários:
Que post tao bom. Força na volta ao FB. Estou sempre a pensar em deixa lo. Posts e blogs como o seu apenas reforçam que o FB a fazer sentido é um sentido muito pequenino em comparação com os blogs.
Obrigado Gustavo.
Não pude deixar de ver, de ler, de sentir.
Grata por estes momentos de reflexão.
Olinda
Eu é que agradeço o comentário. Saúde,
Vale a pena ver o documentário de Justine Lemahieu sobre o médico da segunda foto. Pode ser discutível que consiga, mas tenta algo muito difícil: filmar a fé. Aqui o trailer: https://vimeo.com/349062528 Abraço!
Muito obrigado, dama. A minha mãe ia gostar de ver.
Gostei muito de ler este post.
epá, belo texto. Por vezes pergunto-me o que têm certas imagens que me fazem parar e não parar de olhar para elas neste mundo maluco em que somos bombardeados de imagens todos os dias. São as imagens que me fazem parar com o seu instante silencioso? sou eu que estou com disponibilidade em determinado momento para as olhar? será que é conjugação destes dois factores? Bem, isso também não interessa, é óptimo quando paramos para olhar alguma imagem que nos chama a atenção e ficamos a observá-la, com vontade de a ver novamente, e levantamos questões novas ou antigas por causas delas. Saúde e beijinhos
Enviar um comentário