Leio, releio. A Pequena Crónica de Esther Meynell, e recolhas de documentos do tempo de Bach. Contratos, cartas oficiais. Mas também detalhados relatórios sobre órgãos, e o inventário de bens após a morte do compositor. Depois, mais documentos administrativos, depositados em arquivos municipais. Páginas anódinas, quantas vezes, que analiso com entusiasmo. E se, por exemplo, uma acta diz que o Consistório de Arnstadt repreendeu o organista Baxh por se ter demorado numa viagem a Lübeck quatro vezes mais tempo do que o autorizado pelos seus superiores, para estudar com Dietrich Buxtehude, e por, de regresso ao seu posto, fazer espantosas variações nos seus corais, não sem recorrer a acordes estranhos, para surpresa e desagrado da comunidade, e se leio ainda que, após esta repreensão pelos prelúdios demasiado extensos, o organista Bach começou a improvisar prelúdios brevíssimos, que acabavam logo depois de começar, sendo outra vez repreendido pelo Consistório, se leio estas tão pequenas acusações e defesas, perdidas entre arquivos, com os meus olhos do século XXI, vejo surgirem dessa página, inteiras, Arnstadt e Lübeck, o Consistório e o organista, os tubos do órgão na igreja e as partituras manuscritas, os gestos irascíveis e as paixões contidas, tudo quanto aconteceu e se perdeu nesses dias do início de 1706, vivo e doloroso outra vez, num livro entre as minhas mãos.
Não se pode ressuscitar o passado, mas pode-se escrever sobre o passado, no presente; e misturar os tempos. Receber o que resta de antigas vozes, assinaturas, a dobra da linguagem, suas cerimónias e seus implícitos, a surpreendente consciência de que estas pessoas existiram — o Consistório de Arnstadt, o organista repreendido, um aluno, um fazedor de órgãos, às vezes só um nome sem história, sem obra, sem data de nascimento nem de morte, mas nome de uma pessoa que existiu, de quem resta um processo, uma dívida, uma brevíssima menção. Tentação pequena, infantil, de fantasiar: quem seria este violinista, esse organista, aquele viajante? Nomes, maledicências, testemunhos, um simples registo: a única marca, a única prova de que alguém viveu, com os seus entusiasmos, medos, as suas crenças, alegrias, esperanças, a sua morte.
Leio estas páginas, sites, fac-similes com os meus olhos extemporâneos; leio, interrogo, comparo, trezentos anos depois. Ignoro tanto sobre estes nomes; mas sei o que eles não souberam: que o mundo deles acabou, tudo quanto parecia eterno se revelou perecível, a ordem da sociedade e das nações mudou mil vezes, o que era proibido tornou-se corrente e o necessário escusado, crime e inocência confundiram-se, mas nessa violenta desordem das coisas — a que devagar nos fomos habituando, quase inconscientemente, no ciclo das gerações — a música do Kantor, irascível, envelhecido e fora de moda, sobreviveu.
Pedro Eiras, in Bach, Assírio & Alvim, Setembro de 2014, pp. 28-29.
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