Para a Graça Batista
Para o Jaime Rocha
A casa tinha um arado pendurado no tecto. Talvez ali
estivesse para nos lavrar o pensamento, ou simplesmente cumprindo a função decorativa
de uma obsoleta ferramenta de trabalho. Certo é que me sentei a olhá-la como animal ferido, lembrei-me de meu avô a resmungar com a terra. Cada pessoa tem as
suas memórias de privação e dor, é inesperada a mão que as traz à superfície do pensamento.
Por exemplo, a marginal outrora vestida de preto, mulheres rogando por familiares recolhidos no mar, os barcos a desaparecer
no horizonte e a angústia a manifestar-se num pranto de súplicas. Era incerto o
reencontro. Se a memória for a terra que lavramos, na esperança de que as
palavras germinem como sementes, então a página é já a toalha estendida sobre a
qual degustamos o alimento.
Anterior às locomotivas do sono e ao silêncio, uma lua
distante espreita-nos por entre as nuvens. Bandos de pássaros cumprem suas
funções à beira de um lago, sobrevoando o langor das águas paradas, explorando
canaviais. Dizemos plúmbeo, merencório e gemebundo para nos rirmos da
solenidade que os poetas metem no olhar. Eu mesmo agora falei das locomotivas do sono, do langor das
águas paradas. E ao reler-me, sorri. Na verdade, é apenas água e lodo o que nos aguarda do outro lado das palavras.
O sopro anima a flauta longa de taboca, de novo nos encontramos no lugar nocturno das aves que em bando pontilham o ar com seus voos sinuosos. Devia
ser sempre assim, tão simples como o vento a fazer vibrar o vácuo, respiração
circular de um som que atravessa o silêncio e nos chega como uma sílaba estendida
sobre as águas, corpo que levita e paira. É este o som do chamamento.
Os olhos vêem de dentro para fora. Se olhamos uma árvore,
logo nela projectamos nossas fobias mais profundas. Eu vejo um homem com as
mãos em pala a olhar para o horizonte, tu vês um velho ensonado a esfregar os
olhos, ela vê uma mãe a chorar o filho martirizado. Vemos tudo menos uma árvore
ressequida à sombra dos plátanos, de atalaia a uma conferência de aves que
desengana exílio e abandono.
Eis o contorno a negro da utopia, ver de dentro para fora,
aprender passo a passo a lentidão do ar, sabendo que a saída dos labirintos
corresponde a uma certa forma de afastamento, não das coisas, mas de nós próprios.
A ti me entrego, Senhora das Dores, a ti me entrego feito ruína, pedra sobre
pedra há mil anos exposta no alto de um monte, a ti todas as minhas preces ao
som do cravo e das harpas de vento.
Não vi grifos, mas abraçou-me a paisagem com enormes asas de
afecto. Por ti incendeio todas as velas, lavro a cera, cada uma com a forma de
uma parte do meu sangue, peço-te que protejas tanto os meus amigos como os meus
inimigos, que os libertes dos malefícios da melancolia e do rancor, que lhes
ilumines a estrada da criação para que juntos ou separados possamos continuar a
percorrer os labirintos da loucura que é estar vivo e dizer: amo.
Então chegados a esse lugar onde se escava a terra para
colher o barro com que se moldam casas e sonhos, inspiremos o perfume que adoça
as águas. Podem ser estas as asas da utopia. Avisto ao largo a silhueta de quem
caminha desaparecendo atrás de um monte. Sei que em desaparecendo para mim,
aqui neste lugar onde me encontro, logo aparecerá para alguém no lugar oposto
ao meu. E nisto de aparecer e desaparecer o mais relevante é que caminhemos.
O mais relevante é que ao caminharmos possamos comparecer
perante nós próprios com o rosto limpo, já não deslumbrados com o reflexo nas águas do rio, mas como alguém que se olha a si mesmo nos olhos do
outro. A este “encontro inesperado do diverso” podemos chamar achamento.
Encontro-me em ti, leitor, como tu te encontras em mim, que escrevo. Achamo-nos
um no outro. É esse o fruto colhido das palavras semeadas na terra outrora
arada pelo pensamento.
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