quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

A MESA


   Devastador o silêncio da árvore estendida na terra, acabada de abater. A morte, por instantes, faz-se de secretíssimos cheiros: das folhas que perderam leveza e equilíbrio, dos ramos feridos na queda abrupta, do apertado coração de seiva. Ou será a alma? A alma da árvore liberta do corpo cativo. E logo uma luz imprevista abraça o lugar antes habitado. Luz, crua, sem sombra: incapaz, contudo, de amortalhar a devastação. Vi claridade assim, suave e limpa, em agosto. O homem para. Observa a grandeza da árvore, como se a medisse palmo a palmo, a inclinação do tronco, o peso da fronde: define o lugar certo que irá acolher a morte. De um só gesto, aciona a motosserra - nem um minuto a voracidade dentada carece (veloz a morte das árvores!).
   É um freixo, desconheço-lhe a idade: na margem do rio todas as árvores crescem para além do tempo. Já a luz habita o lugar devoluto, o homem separa os ramos do tronco como se aparasse a devastação do silêncio. Cortei o freixo para tocar a metáfora com as mãos, sentir-lhe o odor? O homem divide o tronco em três partes. Ressequida a memória da seiva, hei-de levar a árvore à serração. Achará o silêncio forma de mesa: construída por mim, na sombra do alpendre, rente ao cheiro intenso das figueiras bravas. Prendo a tábua no banco de carpinteiro, procuro-lhe o correr, limpo-a, limpo-o devagar. O mesmo farei às pernas da mesa e às travessas: o movimento da plaina sempre no mesmo sentido, no mesmo correr, até ao limite dos braços, depois o corpo se cabisbaixa e a lâmina desliza mais além. Ofício de aplainar é como a arte de enxertia: cada golpe será único, exacto, sem recuo. Madeira alinhada e limpa. É tempo de adir as tábuas. Eis o freixo em forma de mesa, metáfora utilitária, onde vou pôr romãs, livros, tangerinas, açucenas, peixes do rio.
   Na brancura da toalha a mancha de vinho. Quando eu desaparecer, outros darão uso à mesa, tosca, de nobre e rijo freixo. Talvez me engane. O seu destino será o silêncio do alpendre, tampo cheio de coisas inúteis. Ou virá o fogo.


Francisco Duarte Mangas, in Pavese no Café Ceuta, Teodolito, Março de 2019, pp. 183-184.

Sem comentários: