domingo, 29 de dezembro de 2019

BALANÇOS


Um balanço do ano sem vida pessoal é um balanço impessoal. Mas como falar em público do que deve manter-se privado? Calamos o mais relevante por medo, para não ferir o outro e para não nos ferirmos com as feridas infligidas no outro, talvez calemos a intimidade por cobardia ou simplesmente por decoro. Num mundo em que o privado e o público se confundem em encenações coloridas de vidas a preto e branco, num mundo onde se espera que os filtros fiquem rotos e tudo se partilhe sem pejo, num mundo assim é talvez por resistência (inadaptação?) que calamos, silenciamos, disfarçamos, maquilhamos, recalcamos a intimidade. O mais que conseguimos é um desabafo, jamais a confissão. Essa reservamo-la para o texto poético, aquele em que a metáfora nos protege da revelação, ou para a história, aquela em que a ficção nos defende da censura. Há muito que me habituei a isto de alguém se rir do que me faz chorar, de alguém se comover ou entristecer com o que me faz rir, pelo que me responsabilizo em absoluto pelo desajuste. Também atravessamos um tempo em que à tal confusão entre público e privado se junta uma completa, radical e perigosa trapalhada entre a ficção e a realidade. Quantas vezes não ouvimos no ano que passou alguém dizer que “contado ninguém acredita”? Muita matéria de facto seria considerada inverosímil se a metêssemos em ficção. Por cá, basta pensarmos em José Sócrates ou no chamado caso Tancos. Lá fora, Trump e Bolsonaro são o rosto do inimaginável. Portanto, tudo o que há anos parecia impossível é hoje possível, tudo o que há anos parecia inverosímil é hoje verosímil. O cinismo e o humor são ferramentas a que nos agarramos para não cairmos no abismo. Viver num mundo que continuadamente se nos mostra por dentro leva-nos facilmente à loucura, ninguém aguenta a saturação a que fica sujeito com tamanha perversidade, pelo que procuramos descontinuá-lo tentando desligar momentaneamente os canais que nos trazem esse mundo, que nos metem dentro desse mundo, que nos transformam em parte integrante desse mundo. A essa descontinuação momentânea (que podemos chamar de pausa ou de interrupção) oferecemos o melhor das nossas vidas, conscientes, porém, de quão débil e escasso é já esse melhor. Uma perspectiva optimista destas coisas leva a que o balanço se concentre no trabalho, isto é, na vida profissional, sobretudo quando a vida profissional o não é, pois andamos quase todos a sobreviver profissionalmente de ocupações que julgamos secundárias. Ninguém paga contas com os poemas que escreve, ninguém alimenta os filhos com os livros que publica, ninguém garante meia dúzia de extravagâncias por ano (restaurantes, cinema, teatro, viagens…) com o fruto da criação. E reparem como lhes chamo extravagâncias. Ao essencial passámos a chamar extravagância, assim o é por estarmos absolutamente dependentes dos sapos que engolimos para podermos continuar a respirar. Quando digo ninguém talvez devesse dizer uma imensa maioria, pois há sempre quem por sorte ou talento almeje a fortuna de um desafogo material que lhe permita ser quem verdadeiramente é. Reduzir um ano a feitos profissionais também não é solução, acaba por soar a falso, uma mentira que pregamos a nós próprios para parecer que a vida é outra coisa que não um projecto eternamente adiado, incompleto, fracassado à partida mas com inúmeras possibilidades de miseráveis vitórias no seu decurso. Quanto vale um ano numa vida? Entre nascermos e morrermos, que verdadeira importância tem um ano na nossa vida?  Talvez a resposta mais honesta, e por isso a mais cruel, seja mesmo: nenhuma. Foi só mais um ano, como diria Artaud, a comer e a cagar, a beber e a mijar, a dormir e a trabalhar, foi só mais um ano a fazermos coisas que podíamos não ter feito e a não fazermos coisas que podíamos ter feito. A compensação para esta monotonia é a constatação de que em breve tudo acabará, deixaremos de contar os anos, os balanços que fizemos cairão no esquecimento, o pó tomará conta de todas as coisas como se nunca tivessem sido.

4 comentários:

Olinda Melo disse...


Cru e real.

Abraço.

hmbf disse...

Bom ano.

panaceia disse...

Muito bom este texto, Henrique. Quanto vale, realmente, um ano numa vida? Este será um ano tão triste como trágico em perdas, o ano em que perdi a minha mãe. É um texto cruel mas a realidade também o é. Bom Ano e um abraço.

hmbf disse...

Bom ano também para ti. E saúde.