Um balanço do ano sem vida pessoal é um balanço impessoal. Mas
como falar em público do que deve manter-se privado? Calamos o mais relevante
por medo, para não ferir o outro e para não nos ferirmos com as feridas
infligidas no outro, talvez calemos a intimidade por cobardia ou simplesmente
por decoro. Num mundo em que o privado e o público se confundem em encenações
coloridas de vidas a preto e branco, num mundo onde se espera que os filtros
fiquem rotos e tudo se partilhe sem pejo, num mundo assim é talvez por
resistência (inadaptação?) que calamos, silenciamos, disfarçamos, maquilhamos,
recalcamos a intimidade. O mais que conseguimos é um desabafo, jamais a
confissão. Essa reservamo-la para o texto poético, aquele em que a metáfora nos
protege da revelação, ou para a história, aquela em que a ficção nos defende da
censura. Há muito que me habituei a isto de alguém se rir do que me faz chorar,
de alguém se comover ou entristecer com o que me faz rir, pelo que me
responsabilizo em absoluto pelo desajuste. Também atravessamos um tempo em que
à tal confusão entre público e privado se junta uma completa, radical e
perigosa trapalhada entre a ficção e a realidade. Quantas vezes não ouvimos no
ano que passou alguém dizer que “contado ninguém acredita”? Muita matéria de
facto seria considerada inverosímil se a metêssemos em ficção. Por cá, basta
pensarmos em José Sócrates ou no chamado caso Tancos. Lá fora, Trump e
Bolsonaro são o rosto do inimaginável. Portanto, tudo o que há anos parecia
impossível é hoje possível, tudo o que há anos parecia inverosímil é hoje verosímil.
O cinismo e o humor são ferramentas a que nos agarramos para não cairmos no
abismo. Viver num mundo que continuadamente se nos mostra por dentro leva-nos
facilmente à loucura, ninguém aguenta a saturação a que fica sujeito com
tamanha perversidade, pelo que procuramos descontinuá-lo tentando desligar momentaneamente
os canais que nos trazem esse mundo, que nos metem dentro desse mundo, que nos
transformam em parte integrante desse mundo. A essa descontinuação momentânea (que
podemos chamar de pausa ou de interrupção) oferecemos o melhor das nossas vidas, conscientes,
porém, de quão débil e escasso é já esse melhor. Uma perspectiva optimista
destas coisas leva a que o balanço se concentre no trabalho, isto é, na vida
profissional, sobretudo quando a vida profissional o não é, pois andamos quase todos
a sobreviver profissionalmente de ocupações que julgamos secundárias. Ninguém
paga contas com os poemas que escreve, ninguém alimenta os filhos com os livros
que publica, ninguém garante meia dúzia de extravagâncias por ano (restaurantes,
cinema, teatro, viagens…) com o fruto da criação. E reparem como lhes chamo
extravagâncias. Ao essencial passámos a chamar extravagância, assim o é por
estarmos absolutamente dependentes dos sapos que engolimos para podermos
continuar a respirar. Quando digo ninguém talvez devesse dizer uma imensa
maioria, pois há sempre quem por sorte ou talento almeje a fortuna de um
desafogo material que lhe permita ser quem verdadeiramente é. Reduzir um ano a
feitos profissionais também não é solução, acaba por soar a falso, uma mentira
que pregamos a nós próprios para parecer que a vida é outra coisa que não um
projecto eternamente adiado, incompleto, fracassado à partida mas com inúmeras
possibilidades de miseráveis vitórias no seu decurso. Quanto vale um ano numa
vida? Entre nascermos e morrermos, que verdadeira importância tem um ano na
nossa vida? Talvez a resposta mais
honesta, e por isso a mais cruel, seja mesmo: nenhuma. Foi só mais um ano, como
diria Artaud, a comer e a cagar, a beber e a mijar, a dormir e a trabalhar, foi
só mais um ano a fazermos coisas que podíamos não ter feito e a não fazermos
coisas que podíamos ter feito. A compensação para esta monotonia é a
constatação de que em breve tudo acabará, deixaremos de contar os anos, os balanços
que fizemos cairão no esquecimento, o pó tomará conta de todas as coisas como
se nunca tivessem sido.
4 comentários:
Cru e real.
Abraço.
Bom ano.
Muito bom este texto, Henrique. Quanto vale, realmente, um ano numa vida? Este será um ano tão triste como trágico em perdas, o ano em que perdi a minha mãe. É um texto cruel mas a realidade também o é. Bom Ano e um abraço.
Bom ano também para ti. E saúde.
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