domingo, 1 de dezembro de 2019

O REINO DA ESTUPIDEZ


A conversa de Bolsonaro sobre DiCaprio não é tão estúpida quanto possa parecer. É preciso perceber a quem se dirige, a um eleitorado em estado de negação para quem o actual presidente do Brasil é a reencarnação do Messias. Quando os incêndios na Amazónia foram notícia, Bolsonaro surgiu como o principal acusado. Políticas de incentivo ao desmatamento, favorecendo negócios instalados na região, justificavam a acusação. Logo surgiu o argumento de que a causa do problema estava nas ONG, as quais se vingavam de um governo sovina em matéria de subsídios. O que Bolsonaro está agora a apregoar aos acólitos é: se eu posso ser acusado de incendiar a Amazónia, então também DiCaprio poderá ser acusado de incendiar a Amazónia. Toda a gente sabe que nem um, nem outro, andaram com fósforos na mão a atear matas, mas um pelo discurso e pelas políticas, e outro pelo apoio financeiro às diabolizadas ONG, podem ser apontados como patrocinadores indirectos daquela catástrofe. Esta lógica por detrás do discurso de quem pretende “endireitar o Brasil”, de pistola à cintura e Bíblia na mão, tem uma força inacreditável junto de uma população que já não se distingue do imediatismo irreflexivo treinado nas redes sociais. 

Em matéria de retórica, regredimos a uma argumentação ao nível de recreio na escola primária. Não importa a razoabilidade do raciocínio, a lógica do mesmo, conta apenas o grau de pathos que se logra imprimir em cada afirmação. Daí que tenhamos definitivamente entrado numa era absolutamente patológica, desprovida de racionalidade, fundamentação, uma era em que a ciência surge desacreditada pela fé, no caso concreto do Brasil e de outros países americanos, a fé fanática, obtusa e cega dos evangélicos. Melhor exemplo disto do que a IURD é impossível de encontrar, o que torna o caso ainda mais espantoso. Eleito para combater a corrupção, Bolsonaro é o principal beneficiário de um sistema religioso altamente corrupto instalado na sociedade brasileira. Pode parecer paradoxal, mas não é. Na realidade, trata-se apenas de uma consequência natural das contradições em que as chamadas democracias liberais ou mesmo as sociais-democracias europeias se deixaram enredar, promovendo “black fridays” ao mesmo tempo que se manifestam indiferentes aos novos modelos de escravatura, incapazes de dar resposta a um mediterrâneo transformado em cemitério efectivo e simbólico de milhões de desafortunados espalhados pelos quatro cantos do mundo. 

A esperança que poderíamos ter no poder da comunicação social como forma de esclarecimento também se desfez em cacos, como recentemente se vem verificando na meticulosa selectividade das notícias. Não é difícil de adivinhar quem factura com tais práticas. Por cá, um grupo da imprensa que inclui jornais tais como o Sol, o I, o Correio da Manhã, o Record, o Jornal Económico, patrocina almoços no Hilton com o Dr. André Ventura, ao mesmo tempo que faz por ignorar um rol de atrocidades, autênticas violações dos direitos humanos mais básicos, em países como o Chile ou a Bolívia, dos quais temos notícia apenas através da imprensa internacional. Não é incompetência, é método. 

Com meio mundo a contribui para o peditório Livre, discutindo os problemas de comunicação da Joacine e as saias do assessor, outra metade vai lavando as mãos como Pilatos fez quando lhe pediram para escolher entre um vil criminoso e o filho de Deus. Depois de umas europeias em que a situação venezuelana foi assunto nacional, depois de horas e horas de directos e páginas e mais páginas de opinião sobre Maduro e Guaidó, o que justifica tanto silêncio sobre o que está a suceder noutros países da América do Sul? Talvez Paulo Rangel ou Augusto Santos Silva queiram explicar agora o que entendem por “asfixia democrática”, se não estiverem também eles entretidos com os cofres de Sócrates ou os atrasos da Joacine.

1 comentário:

Daniel Ricardo Barbosa disse...

Grato por texto tão lúcido.