A conversa de Bolsonaro sobre DiCaprio não é tão estúpida
quanto possa parecer. É preciso perceber a quem se dirige, a um eleitorado em
estado de negação para quem o actual presidente do Brasil é a reencarnação do Messias. Quando os incêndios na Amazónia foram notícia, Bolsonaro surgiu como o
principal acusado. Políticas de incentivo ao desmatamento, favorecendo negócios
instalados na região, justificavam a acusação. Logo surgiu o argumento de que a
causa do problema estava nas ONG, as quais se vingavam de um governo sovina em matéria de subsídios. O que Bolsonaro está agora a apregoar aos acólitos
é: se eu posso ser acusado de incendiar a Amazónia, então também DiCaprio
poderá ser acusado de incendiar a Amazónia. Toda a gente sabe que nem um, nem
outro, andaram com fósforos na mão a atear matas, mas um pelo discurso e pelas
políticas, e outro pelo apoio financeiro às diabolizadas ONG, podem ser
apontados como patrocinadores indirectos daquela catástrofe. Esta lógica por
detrás do discurso de quem pretende “endireitar o Brasil”, de pistola à cintura
e Bíblia na mão, tem uma força inacreditável junto de uma população que já não
se distingue do imediatismo irreflexivo treinado nas redes sociais.
Em matéria
de retórica, regredimos a uma argumentação ao nível de recreio na escola
primária. Não importa a razoabilidade do raciocínio, a lógica do mesmo, conta
apenas o grau de pathos que se logra imprimir em cada afirmação. Daí que
tenhamos definitivamente entrado numa era absolutamente patológica, desprovida
de racionalidade, fundamentação, uma era em que a ciência surge desacreditada
pela fé, no caso concreto do Brasil e de outros países americanos, a fé
fanática, obtusa e cega dos evangélicos. Melhor exemplo disto do que a IURD é
impossível de encontrar, o que torna o caso ainda mais espantoso. Eleito
para combater a corrupção, Bolsonaro é o principal beneficiário de um sistema religioso
altamente corrupto instalado na sociedade brasileira. Pode parecer paradoxal,
mas não é. Na realidade, trata-se apenas de uma consequência natural das
contradições em que as chamadas democracias liberais ou mesmo as sociais-democracias
europeias se deixaram enredar, promovendo “black fridays” ao mesmo tempo que se
manifestam indiferentes aos novos modelos de escravatura, incapazes de dar
resposta a um mediterrâneo transformado em cemitério efectivo e simbólico de
milhões de desafortunados espalhados pelos quatro cantos do mundo.
A esperança que
poderíamos ter no poder da comunicação social como forma de esclarecimento
também se desfez em cacos, como recentemente se vem verificando na meticulosa selectividade das notícias. Não é difícil de adivinhar quem factura com tais práticas. Por cá, um grupo da imprensa que inclui
jornais tais como o Sol, o I, o Correio da Manhã, o Record, o Jornal Económico,
patrocina almoços no Hilton com o Dr. André Ventura, ao mesmo tempo que faz por
ignorar um rol de atrocidades, autênticas violações dos direitos humanos mais
básicos, em países como o Chile ou a Bolívia, dos quais temos notícia apenas
através da imprensa internacional. Não é incompetência, é método.
Com meio
mundo a contribui para o peditório Livre, discutindo os problemas de
comunicação da Joacine e as saias do assessor, outra metade vai lavando as mãos
como Pilatos fez quando lhe pediram para escolher entre um vil criminoso e o
filho de Deus. Depois de umas europeias em que a situação venezuelana foi assunto
nacional, depois de horas e horas de directos e páginas e mais páginas de
opinião sobre Maduro e Guaidó, o que justifica tanto silêncio sobre o que está
a suceder noutros países da América do Sul? Talvez Paulo Rangel ou Augusto
Santos Silva queiram explicar agora o que entendem por “asfixia democrática”,
se não estiverem também eles entretidos com os cofres de Sócrates ou os atrasos
da Joacine.
1 comentário:
Grato por texto tão lúcido.
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