Começar o ano a ler teatro, nomeadamente duas peças de
Luigi Pirandello (n. 1867 – m. 1936). Com tradução de Isabel Lopes, “O Barrete
de Guizos” e “O Homem, A Besta e A Virtude” são as duas peças, reunidas num só
volume, que marcaram o início da parceria estabelecida entre o Teatro da Rainha
e a editora Companhia das Ilhas. Entretanto, foram publicados na mesma colecção volumes de
Beckett, Martin Crimp e Jean-Pierre Sarrazac. À maneira de prefácio, Fernando
Mora Ramos apresenta Pirandello como um “contra-aristotélico”. Assim o é, quer
na lógica, quer na ética. A ligar estas duas peças, por exemplo, o tema do adultério
surge expurgado de qualquer consideração moralizante, sublevando as partes implicadas
num processo que tem tanto de humorístico como de desmistificador.
Em “O
Barrete de Guizos”: uma mulher ciumenta e desconfiada procura incriminar o
marido, tentando apanhá-lo em flagrante com a suposta amante. Esquece-se de
que ao fazê-lo põe também em xeque a honra do marido da amante, servo fiel do presumível
marido adúltero. A quadratura poderia fechar-se neste cruzamento de interesses
em que tanto a “corda da civilidade” como a “corda da seriedade” parecem
desafinadas, não fosse haver entre o interior e o exterior da quadratura um desajustamento
que nos leva ao que é verdadeiramente
essencial nestas peças: desmontar a hipocrisia com que, por interesse ou
pressão social, somos levados a fazer o que não queremos e, por com sequência,
a ser o que não somos.
Ciampa, corno eventual, sabe bem onde está metido, tem até uma tese sobre
o assunto fundada no que poderíamos apelidar de alegoria das marionetas: «No
íntimo, ninguém está contente com o seu papel. Cada qual, tendo diante de si a sua
própria marioneta, havia certamente de lhe cuspir na cara. Mas pelos outros
não, pelos outros gostaria de a ver respeitada».
Também o professor Paolino, da
peça “O Homem, A Besta e a Virtude”, fala de hipocrisia aos seus alunos: «Uma
pessoa que finge, precisamente como um comediante, que finge ser, por exemplo,
um rei e, no entanto, não passa de um pobre piolhoso, ou que representa
qualquer outro papel. Que mal há nisso? Nenhum. Dever! Profissão! — Então onde
é que está o mal? O mal é quando não se é hipócrita dessa maneira, por dever,
por profissão, em cima do palco; mas por gosto, por interesse, por maldade, por
hábito, na vida — ou mesmo por educação — não haja dúvida, porque educado, ser
educado, quer dizer isso mesmo: — por dentro, negros como corvos; por fora,
brancos como pombas; fel no corpo, mel na boca. O mal é quando se entra aqui a
dizer: Bom dia, senhor professor, em vez de: — Vá para o diabo, senhor
professor!» Mas aqui a história é outra. O professor é o homem, ou seja, aquele
que trai, por razões que considera não apenas justas como até virtuosas. A
Besta é o marido traído, por razões que somos levados a considerar mais que
justificadas. E a Virtude é a mulher adúltera, com motivos mais que
razoáveis para que o seja.
A inversão dos padrões morais levada a cabo nestas duas
peças tem um sentido divertido do tipo “crítica
de costumes”, cem anos depois estupidamente actualizada com a virtualização das
relações humanas a permitir um crescendo de moralismo evangelizador disseminado
um pouco por todo o mundo. Claro está que por detrás do véu moralista,
castrador e puritano, outras devassas se vão perpetuando sem que ninguém se
preocupe em disfarçá-las, de tão entretidas andarem as massas a
discutir futilidades. Nestas duas peças do Nobel Pirandello, a “santa
paz doméstica” é antes a fachada que derrui para que o público assista um
pouco ao ridículo de si mesmo. A verdade e a mentira deixam de ser
avaliáveis segundo padrões axiológicos, podendo, dadas as circunstâncias, assumir num mesmo rosto faces viciosas e ao mesmo tempo cheias de virtude.
Engraçado é perceber a
fragilidade dos absolutismos e das tão fáceis, urgentes e comuns precipitações do
julgamento alheio, estabelecendo paradigmas e estereótipos acerca dos
comportamentos humanos como se não fosse paradoxal a realidade a que em todo o
momento estamos enredados. O que é a honestidade e a virtude onde o vício surge
legitimado pela prática comum? Por cá, o povo diz «ladrão que rouba ladrão tem
cem anos de perdão». Que é isto senão uma legitimação da gatunagem? Quem nunca
pecou, atire a primeira pedra. Será esta uma mensagem de perdão universal?
Mais
do que sublinhar virtudes ou apontar pecados, mais do que legitimar
comportamentos, a arte que deste modo nos revela enquanto seres ambíguos e paradoxais, resulta de uma auscultação, de
um diagnóstico, de uma observação que dá a ver a realidade sem filtros
morais, tal qual ela se apresenta a quem a viva na plenitude das suas
contradições intrínsecas. Talvez por isso este também seja um teatro de denúncia,
denúncia da hipocrisia com que disfarçamos a nossa natureza para nos desresponsabilizarmos
das nossas acções. A graça está em assim nos vermos a descoberto, como na antiguidade
o actor que apontava sentado na plateia o visado que inspirara a personagem. A
arte também é uma armadilha para caçar hipócritas.
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