quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

ARMADILHA PARA CAÇAR HIPÓCRITAS



   Começar o ano a ler teatro, nomeadamente duas peças de Luigi Pirandello (n. 1867 – m. 1936). Com tradução de Isabel Lopes, “O Barrete de Guizos” e “O Homem, A Besta e A Virtude” são as duas peças, reunidas num só volume, que marcaram o início da parceria estabelecida entre o Teatro da Rainha e a editora Companhia das Ilhas. Entretanto, foram publicados na mesma colecção volumes de Beckett, Martin Crimp e Jean-Pierre Sarrazac. À maneira de prefácio, Fernando Mora Ramos apresenta Pirandello como um “contra-aristotélico”. Assim o é, quer na lógica, quer na ética. A ligar estas duas peças, por exemplo, o tema do adultério surge expurgado de qualquer consideração moralizante, sublevando as partes implicadas num processo que tem tanto de humorístico como de desmistificador. 
   Em “O Barrete de Guizos”: uma mulher ciumenta e desconfiada procura incriminar o marido, tentando apanhá-lo em flagrante com a suposta amante. Esquece-se de que ao fazê-lo põe também em xeque a honra do marido da amante, servo fiel do presumível marido adúltero. A quadratura poderia fechar-se neste cruzamento de interesses em que tanto a “corda da civilidade” como a “corda da seriedade” parecem desafinadas, não fosse haver entre o interior e o exterior da quadratura um desajustamento  que nos leva ao que é verdadeiramente essencial nestas peças: desmontar a hipocrisia com que, por interesse ou pressão social, somos levados a fazer o que não queremos e, por com sequência, a ser o que não somos. 
   Ciampa, corno eventual, sabe bem onde está metido, tem até uma tese sobre o assunto fundada no que poderíamos apelidar de alegoria das marionetas: «No íntimo, ninguém está contente com o seu papel. Cada qual, tendo diante de si a sua própria marioneta, havia certamente de lhe cuspir na cara. Mas pelos outros não, pelos outros gostaria de a ver respeitada»
   Também o professor Paolino, da peça “O Homem, A Besta e a Virtude”, fala de hipocrisia aos seus alunos: «Uma pessoa que finge, precisamente como um comediante, que finge ser, por exemplo, um rei e, no entanto, não passa de um pobre piolhoso, ou que representa qualquer outro papel. Que mal há nisso? Nenhum. Dever! Profissão! — Então onde é que está o mal? O mal é quando não se é hipócrita dessa maneira, por dever, por profissão, em cima do palco; mas por gosto, por interesse, por maldade, por hábito, na vida — ou mesmo por educação — não haja dúvida, porque educado, ser educado, quer dizer isso mesmo: — por dentro, negros como corvos; por fora, brancos como pombas; fel no corpo, mel na boca. O mal é quando se entra aqui a dizer: Bom dia, senhor professor, em vez de: — Vá para o diabo, senhor professor!» Mas aqui a história é outra. O professor é o homem, ou seja, aquele que trai, por razões que considera não apenas justas como até virtuosas. A Besta é o marido traído, por razões que somos levados a considerar mais que justificadas. E a Virtude é a mulher adúltera, com motivos mais que razoáveis para que o seja. 
   A inversão dos padrões morais levada a cabo nestas duas peças tem um sentido divertido do tipo “crítica de costumes”, cem anos depois estupidamente actualizada com a virtualização das relações humanas a permitir um crescendo de moralismo evangelizador disseminado um pouco por todo o mundo. Claro está que por detrás do véu moralista, castrador e puritano, outras devassas se vão perpetuando sem que ninguém se preocupe em disfarçá-las, de tão entretidas andarem as massas a discutir futilidades. Nestas duas peças do Nobel Pirandello, a “santa paz doméstica” é antes a fachada que derrui para que o público assista um pouco ao ridículo de si mesmo. A verdade e a mentira deixam de ser avaliáveis segundo padrões axiológicos, podendo, dadas as circunstâncias, assumir num mesmo rosto faces viciosas e ao mesmo tempo cheias de virtude. 
   Engraçado é perceber a fragilidade dos absolutismos e das tão fáceis, urgentes e comuns precipitações do julgamento alheio, estabelecendo paradigmas e estereótipos acerca dos comportamentos humanos como se não fosse paradoxal a realidade a que em todo o momento estamos enredados. O que é a honestidade e a virtude onde o vício surge legitimado pela prática comum? Por cá, o povo diz «ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão». Que é isto senão uma legitimação da gatunagem? Quem nunca pecou, atire a primeira pedra. Será esta uma mensagem de perdão universal? 
   Mais do que sublinhar virtudes ou apontar pecados, mais do que legitimar comportamentos, a arte que deste modo nos revela enquanto seres ambíguos e paradoxais, resulta de uma auscultação, de um diagnóstico, de uma observação que dá a ver a realidade sem filtros morais, tal qual ela se apresenta a quem a viva na plenitude das suas contradições intrínsecas. Talvez por isso este também seja um teatro de denúncia, denúncia da hipocrisia com que disfarçamos a nossa natureza para nos desresponsabilizarmos das nossas acções. A graça está em assim nos vermos a descoberto, como na antiguidade o actor que apontava sentado na plateia o visado que inspirara a personagem. A arte também é uma armadilha para caçar hipócritas.

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