sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

VOLTA PARA A TUA TERRA



Não tem conta a quantidade de vezes que ouvi esta expressão ao longo da vida, fosse no pátio de uma escola, num estádio de futebol ou na esplanada de um café. Nunca me foi dirigida, talvez por eu ter cara de lugar nenhum. Qual a nossa terra? Ensinaram-me na escola que Portugal era o fim da Terra, o lugar onde se ficava porque não se podia continuar a caminhar. Sendo verdade, no limite, isto quer dizer que os portugueses são de onde não podem fugir. Ser português é uma condenação. Depois surgiu aquela conversa de dar novos mundos ao mundo. Arranjámos caravelas, metemo-nos mar adentro, fomos parar a outras terras. Passámos de condenados a conquistadores. Nos livros da escola primária do meu pai Portugal ia do Minho até Timor, era um território estranho, amálgama de pintas espalhadas pela superfície do globo. Olho para aquilo e vejo uma espécie de doença cancerígena disseminada pela superfície da Terra. Qual a terra de um português nascido em Timor? E de um português nascido em Angola? E de um português nascido no Brasil? Há tempos, fui beber copos com uns amigos brasileiros. No regresso, um deles, aflito da bexiga, resolveu aliviar-se num recanto público. Era a parede de uma igreja. Alguém o viu a urinar na parede da igreja, invectivou-o, ele pediu desculpa. Ao reparar no sotaque brasileiro do criminoso, logo o puro lusitano soltou o seu grito de guerra: «vai mijar para a tua terra». Acontece que a terra do aflito ficava longe, ele estava mesmo aflito, aliviou-se onde pôde, como pôde, sem sequer ter reparado que estava a aliviar-se nas paredes da casa do Senhor. Não é de todos a casa do Senhor? Durante muito tempo ouvimos falar de Portugal como um país de emigrantes. Os portugueses que foram para França, Suíça, Luxemburgo, os portugueses do Canadá, da América, da Austrália, África do Sul. Depois de perdermos as colónias, terras que porventura alguns ainda julgarão nossas, houve muita gente que regressou à metrópole e ficou a modos que sem terra. Alguns filósofos gregos preferiam dizer-se cidadãos do mundo a reivindicar-se de um lugar, ser cidadão do mundo é ser uma espécie de sem terra. Como é que se manda para a sua terra um cidadão do mundo? Vai para a tua terra ó cidadão do mundo! O insulto torna-se petição de princípio, é como dizer: vai para onde estás. Não compreendo, nunca compreendi, como pode ser insultuoso mandar alguém voltar à sua terra. Julgo que se pretenda rebaixar o outro dizendo-lhe que está numa terra por empréstimo. O vai para a tua terra quer dizer: lembra-te disto, esta terra não é tua, estás aqui porque te acolhemos, portanto respeito, fazes o que mandamos e calas-te, se abrires o bico volta para a tua terra. O “vai para a tua terra” é uma espécie de “cala-te”. Nós só mandamos calar quem não nos convém ouvir, é o argumento final, derradeiro, desesperado, para fugir a um debate e a uma discussão, talvez porque a saibamos perdida. Não queremos discutir com os imigrantes do Bangladesh e da Índia e do Sri Lanka que trabalham nas estufas da Costa Vicentina ou amassam o pão de Rio Maior porque sabemos que o último dos nossos argumentos seria: volta para a tua terra. E se eles voltassem seria uma chatice, teríamos que contratar outras pessoas, porventura com outra capacidade de reivindicação, pessoas que fizessem respeitar os seus direitos laborais. É uma chatice quando um escravo levanta a voz. Em não podendo ser chicoteado, solução feia, sobra-nos mandá-lo para a sua terra.

Donald Trump mandou para a sua terra algumas congressistas que o incomodavam. Não tinha outro argumento. “Go back home”, vociferou o presidente da maior potência do mundo contra Alexandria Ocasio-Cortez, Ayanna Pressley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar. Trump nasceu num bairro chamado Jamaica, filho de imigrantes escoceses. A Escócia, como sabem, faz parte do Reino Unido. Já a actual mulher de Trump nasceu em Novo Mesto, Eslovénia, ex-Jugoslávia. São pessoas com raízes estranhas, pelo que não é de estranhar que na cabeça daquela gente a expressão “volta para a tua terra” tenha um significado diferente do que tem para o comum dos mortais. Imaginem Ocasio-Cortez, nascida no Bronx, filha de imigrantes porto-riquenhos, mandar para a sua terra Donald Trump, nascido no bairro Jamaica, filho de emigrantes escoceses. O que tem de americano Trump que Ocasio-Cortez não tem? O cabelo? Ao sugerir que Joacine Katar Moreira voltasse para a sua terra, André Ventura, que convive indiferentemente com saudações nazis nos seus comícios, legitimou um tipo de argumento racista que é muito comum. Tal como Trump, ele quis dizer: não estás autorizada a falar deste país porque não nasceste aqui, não és de cá. Isto pressupõe a ideia de que só tem legitimidade para falar de Portugal quem nasceu em Portugal. Não há argumento mais redutor e estúpido numa discussão, até pelos efeitos contraproducentes que introduz. Que dizer ao deputado Ventura quando ele falar de ciganos? Que se reduza à sua etnia. E quando ele perorar sobre o Islão? Que se cale, pois é católico, foi seminarista, fique-se pela sua terra espiritual. Ventura diz que Joacine atacou a História de Portugal, defesa curiosa vinda de alguém que a todo o momento parece estar empenhado em atacar a História de Portugal. Não foi isso mesmo que fez ao defender o regresso da pena de morte? A História de Portugal pode ser contada de muitas maneiras, não necessariamente daquela que mais convém a Ventura. Estarei a atacar a História de Portugal se lembrar que Portugal tem um passado esclavagista e colonialista? Estas pessoas que deslocam uma argumentação típica de esplanada para instituições públicas, sejam elas Trump, Bolsonaro ou Ventura, sendo desculpados por uns, por “falarem da boca para fora”, e por outros, por “no fundo não querem bem dizer o que dizem, é tudo ironia”, arrastam consigo um problema que a certa altura se torna ingovernável: legitimam discursos de ódio, tornando-se cúmplices de eventuais acções que venham a ser promovidas por tais discursos. O problema do que dizem, por mais estúpido que possa parecer, está na legitimação e na vulgarização do preconceito, do ódio, da violência, do racismo. Ora, atacar a História de um país é isto mesmo, é recusar-lhe a sua essência multicultural, partindo do princípio erróneo de que a bandeira tem uma só cor e de que há portugueses de primeira e de segunda. Lançar anátemas sobre a história de um país começa, precisamente, nos anátemas que se lançam sobre os seus cidadãos, procurando diminuí-los por causa de características pessoais que nada têm que ver com os lugares do mundo onde exercem a sua cidadania. Há uns anos, um tipo chamado Jeroen Dijsselbloem, líder do Eurogrupo, acusou os países do Sul da Europa, entre os quais Portugal se inclui, de gastarem demasiado dinheiro com álcool e mulheres. Tentem encontrar uma posição de André Ventura sobre este anátema lançado sobre os portugueses. Pode ser que tenham sorte.

2 comentários:

CCF disse...

A maior parte de nós não pertence a uma terra mas sim a várias e ainda bem!
O problema é que justamente ele diz em local público e audível o que tantas vezes ouviu por aí.
~CC~

hmbf disse...

O problema é que ele diz e muitos concordam. É esse o problema.