domingo, 16 de fevereiro de 2020

LACRIMA


Jornalista de profissão, Augusto Baptista (n. 1946) estreou-se em livro com “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias” (Campo das Letras, 2000). Desde então, recolhas de pequenos contos tais como “O caçador de luas” (gatopardo, 2003) e, mais recentemente, este “lacrima” (gatopardo, Outubro de 2019) contribuíram para que se tornasse num nome relevante da micronarrativa em língua portuguesa. Uma atitude discreta e, de certo modo, distante, leva a que poucos tenham conhecimento da sua obra, vinda a lume em edições de circulação restrita que não se cingem à arte narrativa. A fotografia e o aforismo, assim como a arte do tangram, são componentes de um labor criativo onde a dimensão lúdica e uma arguta capacidade de observação do mundo circundante se misturam a um só tempo. No weblog azul-canário (http://azulcanario.blogspot.com/) são mais de dois milhares os aforismos, à laia das “greguerias” cultivadas por Ramón Gómez de La Serna. “lacrima” é uma recolha exemplar de um universo ficcional abrangente, ainda que consolidado num exercício de síntese cuja maior virtude é não precisar de muitas palavras para que muito seja dito:

DEFINIÇÃO

   Equívoco é pensar que um qualquer pateta, a escrevinhar numa mesa de café com vista para o mar, é um poeta.

Os enredos destas histórias dispensam rendilhados e floreados, ainda que não se furtem a um extremo cuidado no tratamento da língua. O rigor é, de resto, aquilo que se exige para que o remate funcione, surpreendendo amiúde o leitor com personagens ambíguas e inusitadas. É assim logo no conto A Visita, onde o que pressupomos ser animal redunda em entidade bem distinta. Por vezes políticos, noutras ocasiões apolíticos, estes microcontos compreendem formatos diversos, cabendo destacar um conjunto de “diálogos urbanos” que adivinhamos resultarem do olhar perscrutador do fotógrafo por detrás deles dissimulado. À crítica social, desde logo plasmada num conto intitulado Empreendedorismo, une-se o absurdo, entendido aqui não apenas enquanto recurso estilístico, mas mais como atitude filosófica, em gestos que desarmam a realidade, subvertem as situações, oferecendo à leitura retratos irónicos de uma certa hipocrisia e boçalidade sociais. O humor e a ironia são, pois, ferramentas ao serviço de uma capacidade de ficcionar o real que tanto o denunciam como ridicularizam. Por vezes, em tonalidades negras das quais se dá aqui um exemplo:

OLHO POR OLHO

   Primeiro atropelaram-lhe o pai. Ficou-se.
   Depois mataram-lhe a mãe no passeio. Ficou-se.
   Mais tarde, mulher à entrada de casa, um camião… Ficou-se.
   Quando lhe tolheram os filhos na passadeira, resolveu enfim comprar o caterpillar.
   E saiu para a estrada.

Outra dimensão que não podemos descurar em algumas destas histórias é a sua inclinação poética, quer seja através de recortes imagéticos intrínsecos ao relato, quer a partir de jogos fonéticos (e até caligráficos, como denuncia o "i" invertido de lacrima na capa do livro) herdeiros da tradição concretista. Há ainda ocasiões em que a poesia surge enquanto corpo autónomo, oferecendo ao texto uma ambiguidade de género que muito me agrada. São disso exemplo A Minha Laranjeira, Tecto Branco, Telefonema, O Fundo, Um Senão… À economia vocabular destas “estórias” corresponde um princípio de síntese traduzível na ideia de que um homem cabe numa lágrima como o universo num grão de areia, resultando o texto de uma tensão permanente entre objecto de observação e sujeito que observa. Mais do que provirem de um qualquer lugar fantástico, feérico, fantasioso, estas histórias, por mais absurdas que por vezes pareçam, conservam um elo ao real do qual são indissociáveis. Enquanto tal, são testemunho de um singular modo de ver e de olhar para o mundo, não deixando também de ser um modo de o reflectir:

AUTOESTRADA

   Está bem que ficou desempregado, uma mão à frente outra atrás, de repente a fome, as dívidas, o precipício (compreensivo, mete a 1.ª). Custará perder o carro, perder a casa, certamente (condescendente, mete a 2.ª). E deve doer, não custa admitir, deve doer pôr termo ao estudo dos filhos, encarar o suicídio da mulher, tão nova (condoído, mete a 3.ª). Custará experimentar o ruir dos projectos de uma vida, sentir a humilhação. Custará… Mas, que raio, desempregados há-os aos montes! (incomodado, mete a 4.ª). E o que mais faltava é que andassem todos aí a carpir, a chatear meio mundo com questões pessoais (irritado, mete a 5.ª, de Beethoven).

3 comentários:

Marina Tadeu disse...

Obrigada Henrique. Desconhecia e por aqui dei também com o blogue tendo assim ganhado o dia.

hmbf disse...

Não tem nada que agradecer. :-) Saúde

Gestão de conteúdos disse...

Acabo de descobrir este olhar sobre a obra do Augusto Baptista. Eu, que detesto adjetivos, só me ocorre dizer pertinente e feliz observação. Parabéns!

Luís Bizarro Borges