quarta-feira, 18 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA #2

Mantemos os despertadores programados na hora a que é costume levantarmo-nos, conferindo também desse modo alguma normalidade aos dias. Hoje tomei o pequeno-almoço na varanda, a observar os funcionários municipais que aparavam bermas e canteiros. Do lado direito do prédio há um terreno baldio que se conserva verdejante desde que para aqui viemos viver há vinte anos. Lembro-me de nos terem anunciado, à época, a construção de uma igreja nas imediações. Felizmente, nunca abriram os caboucos da malfadada igreja e os eucaliptos puderam crescer numa convivência anárquica com pinheiros e moitas. Algumas pessoas seguem a passo estugado com sacos de compras, vigiadas por bandos de rolas dissimuladas nos troncos das árvores, pombos aparentemente desorientados e o voo ameaçador das gaivotas. As gaivotas têm vindo a invadir paulatinamente a cidade, alguém terá que lhes tratar da saúde mais tarde ou mais cedo. Sou surpreendido por uma criatura arisca a cruzar o parque do bairro. Primeiro parece-me uma ratazana, depois suponho tratar-se de um gato, concluo por fim ser um coelho. Vejo-o esgueirar-se por entre os carros estacionados, para depois desaparecer entre as plantas do único canteiro que por aqui cumpre as funções para as quais foi concebido. É um canteiro de cactos, rosmaninho, fetos e hortênsias, homenagem involuntária à multiculturalidade dispersa pelos prédios do bairro. Quedo um bom quarto de hora a olhar para o canteiro, na esperança de que o coelho salte dentre as plantas e se escape para o terreno baldio do lado direito. Suponho que ficaria mais protegido no matagal que medra aos pés dos eucaliptos e dos pinheiros. Não salta. Cá de cima, na varanda, parecia-me mais pequeno e indefeso do que porventura será. Talvez lá de baixo ele me tenha julgado maior e mais seguro do que na realidade sou. 

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