Foi um dia do pai atípico. Telefonei ao meu pela manhã, dei
por mim a reconfortá-lo com o mal dos outros. Podia ser pior, se não tivéssemos
um SNS que nos acode e um país que só para cegos de espírito pode ser chamado
de terceiro-mundista. Calhou-nos agora primeiro, a "nós" que nos autoproclamamos
de civilizados e dotados de culturas superiores. Dado a memória ser curta e a
vista alcançar ainda menos, esquecemo-nos de que lá por fora o ébola e a cólera
são ameaças permanentes. Temo pelos sem-abrigo, sem lar onde se recolherem,
pelo viciado, sem carros para arrumar que garantam a dose diária, temo por quem
não consiga permanecer em casa sem ver os pés a enterrarem-se num pântano de
dívidas. Somos um país de gente a viver à jorna, sem pé-de-meia e solas rotas.
Temo por esses para quem o desespero é estar em casa. Nós seremos o persa da vizinha, a saltar de varanda em varanda.
Ou o gato malhado do prédio defronte, estirado no umbral da janela a observar
os pombos que aterram no parque vazio para depenicarem migalhas. Talvez a idade me tenha incutido um optimismo desmesurado, mas de que me vale não sê-lo nestes tempos em que se torna ainda
mais evidente o quão frágeis, débeis e perecíveis somos? Varridas para debaixo
do tapete as guerrinhas inúteis, ridicularizadas as vaidades mesquinhas,
resta-nos irmos valendo uns aos outros na esperança de que alguém nos valha. Concentro-me na mensagem que a Matilde me deixou
no Facebook, na fotografia onde nos abraçamos fortemente com a Nazaré em pano
de fundo. Foco-me no desenho que a Beatriz de nós fez, no cuidado que teve a
pintar uma moldura velha onde surgimos rejuvenescidos pelo carvão do seu traço.
Tento convencer-me de que a vida é simples como um destes gestos permite
apurar. Não preciso tentar muito, estou convencido.
1 comentário:
E em Braga? com outras coisas a tiracolo:
https://anjoinutil.blogspot.com/2020/03/isolamento-i.html
um abraço
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