segunda-feira, 23 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA #5



Há dias revimos em família “Os Condenados de Shawshank”, pareceu-me apropriado para estes tempos de quarentena. Depois sonhei que também eu atravessava quinhentos metros de esgoto a caminho da liberdade, dando-me conta de que o vazadouro da minha imolação dá pelo nome de redes sociais. A diferença está na ausência de cheiro, e nos anéis perdidos que vamos encontrando pelo caminho. Pergunto-me se não seria preferível uma pneumonia transmissível por contacto cibernético. Um vírus que, muito simplesmente, nos confinasse ao silêncio absoluto, um pouco como naquele filme com a Sandra Bullock de olhos vendados. Exagero, como se perceberá. A ambivalência é o rosto desta crise. No sábado, por exemplo, apeteceu-me caminhar. Assim que meti os pés na rua acorreu-me a necessidade de reabastecimento de um bem essencial: vinho. Fui directo ao supermercado e aproveitei para, além de vinho, trazer peixe e batatas e gelado para as miúdas. Estranhei com sincero assombro a organização, o método, o respeito, a observância de um povo tantas vezes acusado de laxismo. Por outro lado, lembrei-me que aguentámos cinquenta anos de quarentena no século passado. Nada de novo, portanto. Acontece que agora o respeitinho é para bem de todos. E isto faz de mim, contra minha vontade, um predador de ternura. Sempre que saio à rua apetece-me abraçar toda a gente e inundar as pessoas com beijos, até a empregada do supermercado que me vendeu peixe podre. Lá dei o meu passeio a pé, em isolamento para não contaminar ninguém com a minha ambivalência. E fui pensando em coisas parvas, como num Index Musicorum Prohibitorum, enquanto assobiava o “Encosta-te a Mim” do Jorge Palma. Chegado a casa, desinfectei o corpo com uma ensaboadela geral. O dia da poesia foi o mais difícil de todos. Não por ter sido da poesia, mas por causa de uma publicação que as minhas irmãs se lembraram de fazer. Dou com o meu pai e a minha mãe numa fotografia, rodeados da equipa com que há 37 anos nos governam a partir de uma loja, na vetusta mas cada vez mais desértica e abandonada rua das montras de Rio Maior, onde se vendem peúgas, calças, cuecas, camisas, e tudo o que demais precisamos para cobrir um corpo. Na “República” de Platão eram três as necessidades básicas: comida, abrigo e roupa. Dois mil e quinhentos anos depois mantém-se a comida no topo da pirâmide. Farmácias e bancos encarregar-se-ão do resto. Perdoem-me que discorde. Necessidade mais básica do que os meus pais não tenho. Desconfio que não seja por outra que agora quedamos fechados em casa, contribuindo, paradoxalmente, para um céu menos poluído e, talvez, um futuro mais equilibrado. Apesar da tormenta dos mercados.

1 comentário:

armandina maia disse...

perfeito, tanto, tanto que até pareço uma fanática deste narrador.