Pensei que talvez fosse boa ideia contemplar o Atlântico
depois de tantos dias fechados em casa. Temendo desrespeitar as regras do
estado de emergência, ligámos para a PSP a indagar sobre direitos no usufruto de
miradouros e belvederes. O senhor agente deve ter-nos julgado tontos, rematando
prontamente a conversa com uma nega tonitruante. Somos um ajuntamento. Ainda pensei
fintar a classificação distribuindo o mal por freguesias, que é como quem diz
dois em cada viatura, mas logo a consciência pesou tanto sobre os ombros que a
cervical voltou a resmungar. A quem mais ouvi dizer que este país precisava de
um Salazar em cada esquina ouço agora protestos e divirto-me com as desculpas
ensaiadas para fintar os mandamentos da autoridade. Acabámos a ver passar
navios da varanda cá de casa. Não posso dizer que se esteja mal, apesar de ao
fim de tantos dias confinados o ajuntamento começar a parecer uma multidão.
Cabe a cada um a missão de tornar o espaço amplo respeitando os tempos do outro,
imprimindo ritmos ao dia que não os desvirtuem da normalidade outrora contestada.
«Se tivesse que viver um filme, ao menos que fosse um musical», desabafa a Ana,
antes de eu enfiar os auscultadores nos ouvidos para escutar repetidamente a “Polonesa
Heróica” de Chopin. Arruinada a pouca reputação que me restava com parvoíces nas
redes sociais, socorro-me de um pianista polaco para recuperar alguma consideração.
Leio na Wikipédia, inescrutável fonte de erudição, que o tal de Chopin morreu
rodeado de amigos. Eu também estou rodeado de amigos, uns espalhados ao longo
das paredes de casa, outros nas estantes atoladas de livros, e ainda aqueles
que sem se fazerem notar neste modo material de estar vão dando conta de si
rumorejando o desejo de um reencontro. Quando isto passar, dizem. E dentro de
mim despontam personagens de quando e como isto era antes de ter começado a
ser, o psicólogo de Arnaldo aconselhando-lhe vida própria, que o trabalho não
podia substituir a vida, era preciso espairecer, estirar as pernas sobre a relva
dos parques, desfrutar do convívio numa esplanada em tarde soalheira. E Arnaldo
a olhar para a lista interminável de números no telemóvel sem encontrar um a quem
achasse valer a pena ligar, hesitando, adiando, protelando para épocas de
folguedo um simples “como tens passado?”. E o psicólogo a pensar na falta que
lhe faz Arnaldo. Não se está mal na varanda, a espreitar a roupa dos vizinhos
nos estendais e a contar gaivotas no céu. Há dias pareceu-me ter avistado um
milhafre a pairar nas alturas, enquanto cá em baixo um láparo se ocultava entre
as piteiras. Barrico-me na varanda como um gato a mirar melros, pintassilgos, pardais,
pombos, rolas… Bem queria encontrar lesmas, Rita, mas para tanto basto eu.
4 comentários:
Mesmo a morrermos em casa há merdinhas assim que podem ser recuperáveis. Bem, há merdinhas e merdinhas e depois há isto: https://youtu.be/RUI-aCqFslI ... Lembrei-me!... Que filhos da Madre!!!... P.S - Se tivesse dinheiro para isso comprava o passe do zarolho e dos amigos e ficavam pela noite dentro a encantar na minha mesa de cabeceira...
Tão bom de ler.
Obrigado.
São os maiores, RFF. Só mesmo comparáveis a isto: https://www.youtube.com/watch?v=Vo1T5UrGbUI. :-)
Lindo!!! :) Enquanto houver estrada para andar... E quando não houver: https://youtu.be/T5al0HmR4to ... a caminho da Route 66.
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