Fui despertado pelo vento a roçar-se nos estores. Ontem,
enquanto fumava um cigarro na varanda e contava as peças de roupa no estendal
da vizinha do prédio direito, pressenti o temporal numa nuvem negra que se
avistava ao largo. Pode ser que a trovoada anuncie boas notícias. Duvido. Têm
estado umas manhãs maravilhosas em Caldas da Rainha, fenómeno raríssimo na mais
britânica das regiões portuguesas. Quase me apetece apostar que choverá a
cântaros quando derem a clausura por concluída e nos carimbarem o direito a pôr
os pés fora de casa sem prestar contas ao divino Espírito Santo. Talvez devesse
apostar. Com a sorte que tenho, perderia a aposta mas ganharia uma épica
libertação tingida de sol, luz e ar puro.
Escrevo ao som de Ravel, não do "Bolero" mas da "Tzigane". Grande malha. Aproveito as horas mortas para redescobrir
os discos de música clássica cá de casa, ao mesmo tempo que reviro as estantes abarrotadas
e dou com inúmeros livros por ler. Salto de livro em livro sem prosseguir na leitura,
prática que nunca tive e de algum modo me repugna. É como deixar comida no
prato, um desperdício, um insulto aos subnutridos deste mundo. A excepção foi “A
Mulher do Meio”, de Ivone Mendes da Silva.
Não sei se há boas e más conjugações
astrais para lermos determinado livro, mas parece-me existir algo de
misantrópico neste período da nossa história colectiva que acaba por favorecer
os gestos simples e solitários de resistência ao desencanto com que as entradas
d’”A Mulher do Meio” nos brindam. A Ivone escreve sem vírgulas, a escrita flui
naturalmente, as gralhas e os lapsos conferem aos seus aforismos diarísticos
uma sedutora autenticidade. Traçamos o perfil de quem nos escreve à medida que
avançamos, sem que tal seja particularmente relevante para que desejemos
continuar a avançar. Professora, divorciada, mãe, voluntariamente isolada no
seu mundo doméstico temperado a chá, socialmente distante: «Construo a
distância e com ela me protejo» (p. 13), «Trato a distância como um tesouro
frágil. Protejo-me dos encontros e do ruído» (p. 53). A actualidade de
«distanciamento social» politicamente infligido oferece uma ironia profética a algumas entradas :
«Tenho a paciente ambição de um dia conseguir fechar-me em
casa com curtas saídas bem espaçadas apenas para me abastecer de mantimentos e
café. Também chá. Mas talvez aí eu sinta falta dos caminhos como senti hoje que
não os procurei. Viver retirada afigura-se-me o que de melhor posso esperar da
vida. Choveu durante a tarde mas depois abriu e o céu anoiteceu rosado. Pensei
que poderia ainda ir caminhar mas recuei. Sentei-me junto à janela aberta e lá
em baixo na avenida cheirava à folhagem das tílias. Ou eu o imaginava» (Língua
Morta, Maio de 2019, p. 106).
Inofensivos, estes textos omitem quanto de
desconforto há do ser para consigo mesmo. Tal refreamento é uma vantagem para o leitor. À distância, “a mulher do meio” caminha,
cumprimenta, observa os outros, conservando-se igualmente distante para com quem partilha a lassidão quotidiana. Está entre qualquer coisa que se revela sem se confessar e qualquer coisa que se partilha sem se expor. Quando a Matilde
terminar “Os Maias” hei-de emprestar-lhe “A Mulher do Meio”.
As miúdas saíram para uma caminhada breve, como ordenam os regulamentos. Ainda não haviam passado dez
minutos, estavam de regresso. Uma sacristã mais papista do que o papa, devidamente
ajaezada na sua farda de PSP, remeteu-as ao lar com o argumento de que não
entendiam a gravidade da situação. Metidas num apartamento há três semanas, as
pobres coitadas devem ter ficado traumatizadas. O conceito de passeio higiénico
adquiriu todo um novo significado com o excesso de zelo da senhora agente: é uma espécie de banho de água fria, rápido e altamente desconfortável.
À noite
revimos “O Piano”, outra história dramática com final feliz para educação
sentimental de reclusos em desespero. Continuo a gostar da banda sonora do
Michael Nyman, mas o que mais me impressionou desta vez foi a interpretação de Holly Hunter. O que será feito dela? Depois de “Crash” perdi-lhe o rastro.
3 comentários:
Olá. Que tudo esteja bem, contigo e com os teus. Escrevi-te um e-mail. Se puderes, lê-o. Grato, JM
Para onde enviaste? Se foi para o Yahoo, já não uso. O meu mail agora é fialho.henrique@gmail.com. Saúde.
Ok. Seguiu agora para o endereço que me facultaste. Saúde.
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