quarta-feira, 1 de abril de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA #7


Fui despertado pelo vento a roçar-se nos estores. Ontem, enquanto fumava um cigarro na varanda e contava as peças de roupa no estendal da vizinha do prédio direito, pressenti o temporal numa nuvem negra que se avistava ao largo. Pode ser que a trovoada anuncie boas notícias. Duvido. Têm estado umas manhãs maravilhosas em Caldas da Rainha, fenómeno raríssimo na mais britânica das regiões portuguesas. Quase me apetece apostar que choverá a cântaros quando derem a clausura por concluída e nos carimbarem o direito a pôr os pés fora de casa sem prestar contas ao divino Espírito Santo. Talvez devesse apostar. Com a sorte que tenho, perderia a aposta mas ganharia uma épica libertação tingida de sol, luz e ar puro. 
   Escrevo ao som de Ravel, não do "Bolero" mas da "Tzigane". Grande malha. Aproveito as horas mortas para redescobrir os discos de música clássica cá de casa, ao mesmo tempo que reviro as estantes abarrotadas e dou com inúmeros livros por ler. Salto de livro em livro sem prosseguir na leitura, prática que nunca tive e de algum modo me repugna. É como deixar comida no prato, um desperdício, um insulto aos subnutridos deste mundo. A excepção foi “A Mulher do Meio”, de Ivone Mendes da Silva. 
   Não sei se há boas e más conjugações astrais para lermos determinado livro, mas parece-me existir algo de misantrópico neste período da nossa história colectiva que acaba por favorecer os gestos simples e solitários de resistência ao desencanto com que as entradas d’”A Mulher do Meio” nos brindam. A Ivone escreve sem vírgulas, a escrita flui naturalmente, as gralhas e os lapsos conferem aos seus aforismos diarísticos uma sedutora autenticidade. Traçamos o perfil de quem nos escreve à medida que avançamos, sem que tal seja particularmente relevante para que desejemos continuar a avançar. Professora, divorciada, mãe, voluntariamente isolada no seu mundo doméstico temperado a chá, socialmente distante: «Construo a distância e com ela me protejo» (p. 13), «Trato a distância como um tesouro frágil. Protejo-me dos encontros e do ruído» (p. 53). A actualidade de «distanciamento social» politicamente infligido oferece uma ironia profética a algumas entradas : 

«Tenho a paciente ambição de um dia conseguir fechar-me em casa com curtas saídas bem espaçadas apenas para me abastecer de mantimentos e café. Também chá. Mas talvez aí eu sinta falta dos caminhos como senti hoje que não os procurei. Viver retirada afigura-se-me o que de melhor posso esperar da vida. Choveu durante a tarde mas depois abriu e o céu anoiteceu rosado. Pensei que poderia ainda ir caminhar mas recuei. Sentei-me junto à janela aberta e lá em baixo na avenida cheirava à folhagem das tílias. Ou eu o imaginava» (Língua Morta, Maio de 2019, p. 106). 

   Inofensivos, estes textos omitem quanto de desconforto há do ser para consigo mesmo. Tal refreamento é uma vantagem para o leitor. À distância, “a mulher do meio” caminha, cumprimenta, observa os outros, conservando-se igualmente distante para com quem partilha a lassidão quotidiana. Está entre qualquer coisa que se revela sem se confessar e qualquer coisa que se partilha sem se expor. Quando a Matilde terminar “Os Maias” hei-de emprestar-lhe “A Mulher do Meio”. 
   As miúdas saíram para uma caminhada breve, como ordenam os regulamentos. Ainda não haviam passado dez minutos, estavam de regresso. Uma sacristã mais papista do que o papa, devidamente ajaezada na sua farda de PSP, remeteu-as ao lar com o argumento de que não entendiam a gravidade da situação. Metidas num apartamento há três semanas, as pobres coitadas devem ter ficado traumatizadas. O conceito de passeio higiénico adquiriu todo um novo significado com o excesso de zelo da senhora agente: é uma espécie de banho de água fria, rápido e altamente desconfortável. 
   À noite revimos “O Piano”, outra história dramática com final feliz para educação sentimental de reclusos em desespero. Continuo a gostar da banda sonora do Michael Nyman, mas o que mais me impressionou desta vez foi a interpretação de Holly Hunter. O que será feito dela? Depois de “Crash” perdi-lhe o rastro.

3 comentários:

Jorge Melícias disse...

Olá. Que tudo esteja bem, contigo e com os teus. Escrevi-te um e-mail. Se puderes, lê-o. Grato, JM

hmbf disse...

Para onde enviaste? Se foi para o Yahoo, já não uso. O meu mail agora é fialho.henrique@gmail.com. Saúde.

Jorge Melícias disse...

Ok. Seguiu agora para o endereço que me facultaste. Saúde.