Doutora em Antropologia Social, Marília Floôr Kosby (n.
1984) nasceu em Arroio Grande, um dos pontos mais a sul do Brasil, na fronteira
com o Uruguai. “Mugido (ou diários de uma doula)” (Douda Correria, Junho de
2019) é um livro imperdível. No final, em conversa com a poeta Angélica
Freitas, a autora revela um pouco do seu singular universo. Afastada do frenesi
das grandes cidades, esta é uma poesia do mundo rural que nada tem a partilhar
que possa dizer-se bucólico ou idílico. O mundo rural nos poemas de Marília
Floôr Kosby é como é, violento, cruel, agressivo, sobrando da proximidade entre o homem
e a natureza uma relação de poder e exploração que nada tem que ver com a
pose contemplativa de diversa poesia arreigada às raízes campesinas. A
misoginia em ambiente rural é um dos temas centrais deste livro, explorado através
de uma arriscada conotação da mulher com o gado. Diz a autora: «Aqui cabe dizer
que quando falo do mundo campeiro, de estâncias e campanha, coloco-me como uma
mulher branca em cuja família estiveram os patrões». E continua: «Vi que essa
vida junto aos animais de criação me constituía, era parte de mim, era uma
referência muito forte para o meu jeito de estar no mundo e que as mulheres
existem nesse mundo para além de como “las intrusas”». A relação com os animais
surge tingida pelo sangue das caçadas e das matanças, por uma carnificina
onde os esquemas de criação e de reprodução esvaziam de qualquer eroticidade a
sexualidade em estado bruto retratada nos poemas. “Mugido” impressiona pela
violência da linguagem associada a um campo expurgado de emotividade. Em vez de
procurar traduzir o canto dos passarinhos, a autora busca o mugido das
vacas. Fica um exemplo desse trabalho:
os ruminantes devem ter uns quatro estômagos
tudo que eles engolem vida afora volta
eu não sei
quantas vezes!
e uma língua só
uma boca só
um cu apenas
mas o escroto de um ruminante
não se rompe assim no más
é muito mais forte que os demais
o saco desses animais
não cai assim
no más
por isso é possível capar os machos ruminantes
pelos mais diversos e experimentais métodos de
emasculação:
empurrar as bolas de volta para dentro da cavidade
abdominal
danificar o canal espermático com emasculador sem
machucar a
pele do prepúcio
destruir as bolas a marretadas
sangrar não é preciso
tristes toscas engenhosas mandíbulas
as dos ruminantes
como será estar nessa vida
se vendo abortar
o vômito
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