(tentativa número um para criar o mundo)
Deus criou o mundo porque queria fazer uma indústria de grilos.
Ou criou primeiro os grilos. Dentro de pequenas gaiolas de cana.
E os grilos cantavam, cantavam, a sua estrídula voz
calçava a eternidade. A mulher de Deus barafustou:
"Não quero nada disto no meu jardim, com esta chinfrineira
nem consigo ouvir os meus sonhos. E que ideia,
um bicho com um canto tão triste?" Deus concedeu que os grilos
eram barulhentos. Deviam estar dispersos. E mortificou-o
a sugestão de que o canto dos grilos
era triste. As mulheres nunca estavam contentes.
Criou então o mundo para acolher os grilos., e criou
os outros animais para que os grilos os vissem
e tivessem outros motivos para cantar.
Mas é cada vez mais triste o canto dos grilos.
(tentativa número dois)
E Deus criou o mundo porque gostava de caracóis.
Ou não tanto, mas da espiral.
Sim, caprichara com aquela forma
— chamou-lhe "a minha gota de infinito —
que implantara em cima da lesma. Num estalar
de dedos criou triliões de espirais ambulantes.
A sua mulher relutava com a ubiquidade daquela baba
que aqui e ali reluzia (as auroras boreais),
mas distraía-a aquele enigmático amante d' olhos em bico
que a tudo dizia OM. Porém
cresceu o tumulto quando o sol se atapetou
de caracóis. Era uma praga.
Então Deus criou a Terra, dotou os caracóis de amnésia
e deu-lhes um predador natural: o alfinete.
(tentativa número três)
Deus criou a ilha Tera (hoje, nos mapas, Santorini),
foi essa a primeira porção de terra que despontou da sonâmbula
película de água. Chamou a sua mulher e apontou a ilha: "Eis Tera,
de que deriva o teu nome Teresa". Esta limitou-se a observar:
"As saudades que tenho de bulbul... só pode ter sido um gago,
quem lhe deu um nome!" Deus ficou furioso, embora por regra
nunca desfizesse o que havia feito. As águas também não gostaram,
aquela erupção perturbava a crença de que se situavam no topo
do mundo e encarniçadas em mostrar que água mole
em pedra dura... engendraram as marés. A Deus irritou
que algo criado derrubasse o esmero doutras manifestações
do seu imenso poder. Como represália criou o Evereste.
Foi então que, por desdém, a água cuspiu para terra
algumas bactérias e animais de improvável utilidade.
António Cabrita, in Método de caligrafia para a mão esquerda, colecção 12catorze, Edições Húmus, Junho de 2020, pp. 50-52. Entretanto, a conversa com o autor prosseguiu em Sinal Aberto.
Sem comentários:
Enviar um comentário