11-1-1930
Bebé:
Obtida a devida autorização do snr. eng. Álvaro de Campos, mando-lhe o poema que escrevi entre as estações da Casa Branca e Barreiro A, terminando a inspiração, entretanto, na Moita.
Este poema deve ser lido de noite e num quarto sem luz. Também, devidamente aproveitado, serve para fazer papelotes para as bonecas de trapo, para tapar as fechaduras contra o frio, os olhares e as chaves, e para tirar medidas para sapatos pés que não tenham mais comprimento que papel.
Creio que estão feitas todas as recomendações para o uso. Não é preciso agitar antes de usar.
Até logo.
Íbis.
CASA BRANCA - BARREIRO A
(Poema pial)
Toda a gente que tem as mãos frias
Deve metê-las dentro das pias.
Pia número UM,
Para quem mexe as orelhas em jejum.
Pia número DOIS,
Para quem bebe bifes de bois.
Pia número TRÊS,
Para quem espirra só meia vez.
Pia número QUATRO,
Para quem manda as ventas ao teatro.
Pia número CINCO,
Para quem come a chave do trinco.
Pia número SEIS,
Para quem se penteia com bolos-reis.
Pia número SETE,
Para quem canta até que o telhado se derrete.
Pia número OITO,
Para quem quebra nozes quando é afoito.
Pia número NOVE,
Para quem se parece com uma couve.
Pia número DEZ,
Para quem cola selos nos dedos dos pés.
E, como as mãos já não estão frias,
Tampa nas pias!
Moita*
*Silêncio na estação,
à vontade do freguês.
Fernando Pessoa, in Cartas de Amor de Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, edição de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, 3.ª edição, Junho de 2015, 300-302.
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