sábado, 14 de novembro de 2020

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #30

Não nos queixemos do tempo que faz, minhas filhas, e afastemos de uma vez por todas o tempo que é, nem que para tal nos vejamos compelidos a mastigar em solidão as nossas próprias dores. Há uma alegria no mundo que lhe traz mistério, é a da fonte no meio do deserto, uma nuvem com a forma de um animal, o gesto de abraçar alguém e dizer-lhe: estou contigo. A par desta alegria há uma tristeza que parece infinita porque é natural nos homens ampliar o sofrimento. Reparai como é tão mais fácil chegar a um coração pela tragédia quão difícil se torna sensibilizá-lo pelo gozo de viver. O riso envergonha-nos, as lágrimas seduzem-nos, e, no entanto, a sensação de que tudo é uma comédia persiste.

   Há uns anos, como sabeis, dediquei um livro aos que se matam. Confesso-vos que nunca me interessou o porquê de se matarem, pelo menos nunca me interessou tanto quanto continua a interessar-me o porquê de não se matarem outros. Será o suplício de nos mantermos vivos menos poético do que a decisão de nos termos mortos? Quantos serão os modos de se estar morto em vida? O que para mim sempre esteve em causa resumiu-o Ruy Belo: «Suicido-me nas palavras. (…) Ao escrever, mato-me e mato». Ninguém percebe as forças que animam tal decisão, muito menos a percepção anterior à de que tudo é em vão. Ainda assim, a gente mata-se a escrever como quem se mata a esgaravatar no deserto esperando que à superfície surja água com que saciar a sede.

   O meu desprezo é, sempre foi, pela exibição da tristeza, pelo exibicionismo da melancolia, pela sublimação da morte quando, vai-se a ver, e a vida gira como um carrossel grotesco de hipócritas lambuzando-se em algodão doce. Este mundo, minhas filhas, está atolado de pierrots a plagiarem meninos da lágrima. Daí que na introdução a um livro anterior aos meus suicidados eu haja proposto a esses pierrots que se matassem, abdicassem ou se dedicassem à criação de galinhas em vez de perderem tempo a cacarejar desesperos e desassossegos de pacotilha. «O poeta é um ser condenado»? Sim, mas não menos que um ladrilhador ou a dona Ilda das limpezas.

   Tão distintas são as razões que levam alguém a pôr termo à vida que considerar o suicídio «o manifesto de coerência do poeta» só pode significar uma de duas coisas: ou nada se percebe da vida ou nada se entende de poesia. Terá Thomas Chatterton pretendido matar-se, aos 17 anos, para manifestar uma putativa coerência que o Nobel Yasunari Kawabata só vislumbrou aos 72? O que haverá de comum entre o suicídio de Antonin Artaud e a desesperança de Antero de Quental? Acerca do tema, de resto, escreveu o primeiro:  «A matar-me não será no intuito de destruir-me, mas sim para me reconstituir, o suicídio será para mim unicamente um meio de me reconquistar pela violência, de fazer uma irrupção à bruta no meu ser, de ganhar a pouco segura vantagem de Deus». A fé dos homens tem contornos inimagináveis.

   Minhas filhas, a nós, que estamos vivos, não resta senão respeitar a decisão de quem quer morrer, aceitando que por detrás da mesma pouco ou nada nos é dado compreender. Ridículo seria reduzir a «manifesto de coerência» a depressão, a doença mental, a raiva, a fúria, o desespero, o desejo, a fuga ao sofrimento, o acidente, a honra, a vergonha, o amor, a frustração, que de tantas e de tão variadas formas podem impelir alguém ao precipício da morte. Há quem se mate por paixão, há quem se mate por vazio. Yves Le Bonniec e Claude Guillon encararam o suicídio como uma arma para denunciar misérias, enquanto Marx interpretou-o como resultado de uma opressão social assassina. Durkheim estudou-o do ponto de vista sociológico, Hume abordou-o a partir do prisma da culpabilidade moral, Camus dedicou-lhe algumas das suas melhores páginas, mas poucos como René Crevel terão sabido expressá-lo no que tem de essencial e individualmente humano. Por humano entendo frágil. Talvez André Gorz, com o seu exemplo, tenha conseguido expressá-lo de modo igualmente esclarecedor.

   É deste último que pretendo falar-vos. Sabeis da admiração que tenho pela sua carta derradeira, dirigida ao amor da sua vida, a actriz Doreen Keir. Casaram em 1949, tiveram uma vida rica e feliz: «Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca». Consolidaram o amor discutindo o mundo, cúmplices numa guerra contra os males que o ameaçam. As viagens e as percepções divergentes estimularam-lhes um pensamento que só resulta inteiro quando não está só, quando evolui do confronto de ideias e recusa o autismo castrador da opinião sem contraditório. A tristeza bateu à porta pela visita da doença. Aracnoidite, cancro do endométrio. «Cada um escutava a respiração do outro», até terem ambos deixado de respirar em conjunto num dia de Setembro de 2007. Foram encontrados dois dias depois, deitados um ao lado do outro, com as palavras de André ressumando razões: «Não me posso imaginar a continuar a escrever se tu já não estiveres». É mais comum do que se julga, esta impossibilidade gerada pela ausência.

  Crevel era uma criança quando viu o pai pendurado pelo pescoço, razão pela qual fez do suicídio uma obsessão «como a melhor e a pior garantia contra o suicídio». Palavras do próprio. Gorz encarou-o como uma espécie de eutanásia, partindo com a sua companheira por não aguentar mais viver no sofrimento da perda acelerada pela doença. Semelhantes são os casos de Arthur Koestler e Heinrich von Kleist. Gilles Deleuze decidiu tratar do cancro nos pulmões pondo fim à vida, Camilo estava cego. Emilio Salgari não aguentou a loucura da mulher e a miséria em que vivia. O suicídio entre os mais jovens é muitas vezes acompanhado de diagnósticos de depressão, esquizofrenia, transtornos vários, existências excessivas, autodestrutivas, consumo de drogas, descompensações. Até que ponto temos mão nas doenças que nos assaltam? O ambiente social, a pressão, fazem estragos, estejamos a falar de artistas ou de taberneiros. Conheci dois que se enforcaram, nenhum deles escrevia poemas.

   Isto para dizer que se «o poeta que se mata cumpre-se», resta saber se o poeta que fica por se matar não se cumpre. Fernando Pessoa cumpriu-se? Herberto Helder cumpriu-se? E o que será isso de um poeta se cumprir? Uma vida cumpre-se entre a concepção e a morte, o poeta não se cumpre senão nos poemas que o fazem cumprir-se. O suicídio é um poema? Todos os suicidas são poetas? Estará o poeta português valter hugo mãe, que recentemente assinou o prefácio de um livro da actual coqueluche do entretenimento televisivo nacional, ciente da incoerência em que incorre mantendo-se vivo? Diz ele que «escrevem-se poemas para protelar», propósito, cremos, do qual não resultarão senão maus poemas. Ao contrário, na senda de Ruy Belo, creio eu que um artista deve criar como vive, amando, destruindo-se naquilo que cria, como por fusão nos destruímos naquilo que amamos. A violência vem da ordem que se altera, não do fim que se impõe.

   Minhas filhas, o poema não recusa a vida como a morte o faz, o poema aceita a vida tal como ela é: contraditória, paradoxal, absurda, bela e horrível na mesma proporção. Talvez a falácia surja dessa tendência para substituir deus pela poesia, ou para fazer da poesia um avatar do sagrado, como se tudo não se passasse num corpo, o nosso, que é o princípio e o fim de tudo quanto nos acontece. Não julgueis, minhas queridas, que por dar termo a esse corpo alguém manifesta ou deixa de manifestar poesia. Poético é o acaso de sermos minúsculos grãos de poeira neste vastíssimo universo que, por medo ou necessidade, procuramos reduzir ao significado que atribuímos a nós mesmos e não temos, assim disfarçando a terrível evidência de que tudo não passa de um equívoco. Um mal-entendido, esta importância que nos damos.

4 comentários:

Sandra Costa disse...

É um dos teus textos mais belos, mais poéticos, seja lá o que isso for.

J. D. S. disse...

Esse livdinho é mui guapo, tambem cono objecto, e este texto mui bueno é. Agora, o Mãe pode escrever coisas em forma de versos, mas chamar-lhe poeta é muifa condescendência

Marina Tadeu disse...

Um mal entendido que nos condiciona e subjuga, por mais que tentemos ver pelos olhos doutrem. Provavelmente já leste mas deixo-te este do David Foster Wallace. Lembra que a vida humana é o seu próprio encarceramento, pois faz de cada um de nós, o centro.

https://www.brainpickings.org/?s=this+is+water

Muito obrigada.

hmbf disse...

Obrigado. Saúde.