Há uns anos, como sabeis, dediquei um livro
aos que se matam. Confesso-vos que nunca me interessou o porquê de se matarem,
pelo menos nunca me interessou tanto quanto continua a interessar-me o porquê
de não se matarem outros. Será o suplício de nos mantermos vivos menos poético
do que a decisão de nos termos mortos? Quantos serão os modos de se estar morto
em vida? O que para mim sempre esteve em causa resumiu-o Ruy Belo: «Suicido-me
nas palavras. (…) Ao escrever, mato-me e mato». Ninguém percebe as forças que
animam tal decisão, muito menos a percepção anterior à de que tudo é em vão.
Ainda assim, a gente mata-se a escrever como quem se mata a esgaravatar no deserto
esperando que à superfície surja água com que saciar a sede.
O meu desprezo é, sempre foi, pela exibição
da tristeza, pelo exibicionismo da melancolia, pela sublimação da morte quando,
vai-se a ver, e a vida gira como um carrossel grotesco de hipócritas
lambuzando-se em algodão doce. Este mundo, minhas filhas, está atolado de
pierrots a plagiarem meninos da lágrima. Daí que na introdução a um livro
anterior aos meus suicidados eu haja proposto a esses pierrots que se matassem,
abdicassem ou se dedicassem à criação de galinhas em vez de perderem tempo a
cacarejar desesperos e desassossegos de pacotilha. «O poeta é um ser condenado»?
Sim, mas não menos que um ladrilhador ou a dona Ilda das limpezas.
Tão distintas são as razões que levam alguém
a pôr termo à vida que considerar o suicídio «o manifesto de coerência do
poeta» só pode significar uma de duas coisas: ou nada se percebe da vida ou
nada se entende de poesia. Terá Thomas Chatterton pretendido matar-se, aos 17
anos, para manifestar uma putativa coerência que o Nobel Yasunari Kawabata só
vislumbrou aos 72? O que haverá de comum entre o suicídio de Antonin Artaud e a
desesperança de Antero de Quental? Acerca do tema, de resto, escreveu o
primeiro: «A matar-me não será no intuito de destruir-me, mas sim para me
reconstituir, o suicídio será para mim unicamente um meio de me reconquistar
pela violência, de fazer uma irrupção à bruta no meu ser, de ganhar a pouco
segura vantagem de Deus». A fé dos homens tem contornos inimagináveis.
Minhas filhas, a nós, que estamos vivos, não
resta senão respeitar a decisão de quem quer morrer, aceitando que por detrás
da mesma pouco ou nada nos é dado compreender. Ridículo seria reduzir a «manifesto
de coerência» a depressão, a doença mental, a raiva, a fúria, o desespero, o
desejo, a fuga ao sofrimento, o acidente, a honra, a vergonha, o amor, a
frustração, que de tantas e de tão variadas formas podem impelir alguém ao
precipício da morte. Há quem se mate por paixão, há quem se mate por vazio. Yves
Le Bonniec e Claude Guillon encararam o suicídio como uma arma para denunciar
misérias, enquanto Marx interpretou-o como resultado de uma opressão social assassina.
Durkheim estudou-o do ponto de vista sociológico, Hume abordou-o a partir do
prisma da culpabilidade moral, Camus dedicou-lhe algumas das suas melhores
páginas, mas poucos como René Crevel terão sabido expressá-lo no que tem de
essencial e individualmente humano. Por humano entendo frágil. Talvez André
Gorz, com o seu exemplo, tenha conseguido expressá-lo de modo igualmente
esclarecedor.
É deste último que pretendo falar-vos.
Sabeis da admiração que tenho pela sua carta derradeira, dirigida ao amor da
sua vida, a actriz Doreen Keir. Casaram em 1949, tiveram uma vida rica e feliz:
«Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca». Consolidaram
o amor discutindo o mundo, cúmplices numa guerra contra os males que o ameaçam.
As viagens e as percepções divergentes estimularam-lhes um pensamento que só resulta
inteiro quando não está só, quando evolui do confronto de ideias e recusa o
autismo castrador da opinião sem contraditório. A tristeza bateu à porta pela
visita da doença. Aracnoidite, cancro do endométrio. «Cada um escutava a
respiração do outro», até terem ambos deixado de respirar em conjunto num dia
de Setembro de 2007. Foram encontrados dois dias depois, deitados um ao lado do
outro, com as palavras de André ressumando razões: «Não me posso imaginar a
continuar a escrever se tu já não estiveres». É mais comum do que se julga,
esta impossibilidade gerada pela ausência.
Crevel era uma criança quando viu o pai
pendurado pelo pescoço, razão pela qual fez do suicídio uma obsessão «como a
melhor e a pior garantia contra o suicídio». Palavras do próprio. Gorz
encarou-o como uma espécie de eutanásia, partindo com a sua companheira por não
aguentar mais viver no sofrimento da perda acelerada pela doença. Semelhantes são
os casos de Arthur Koestler e Heinrich von Kleist. Gilles Deleuze decidiu tratar
do cancro nos pulmões pondo fim à vida, Camilo estava cego. Emilio Salgari não
aguentou a loucura da mulher e a miséria em que vivia. O suicídio entre os mais
jovens é muitas vezes acompanhado de diagnósticos de depressão, esquizofrenia,
transtornos vários, existências excessivas, autodestrutivas, consumo de drogas,
descompensações. Até que ponto temos mão nas doenças que nos assaltam? O
ambiente social, a pressão, fazem estragos, estejamos a falar de artistas ou de
taberneiros. Conheci dois que se enforcaram, nenhum deles escrevia poemas.
Isto para dizer que se «o poeta que se mata
cumpre-se», resta saber se o poeta que fica por se matar não se cumpre. Fernando Pessoa cumpriu-se? Herberto
Helder cumpriu-se? E o que será isso de um poeta se cumprir? Uma vida cumpre-se
entre a concepção e a morte, o poeta não se cumpre senão nos poemas que o fazem
cumprir-se. O suicídio é um poema? Todos os suicidas são poetas? Estará o poeta
português valter hugo mãe, que recentemente assinou o prefácio de um livro da
actual coqueluche do entretenimento televisivo nacional, ciente da incoerência
em que incorre mantendo-se vivo? Diz ele que «escrevem-se poemas para protelar»,
propósito, cremos, do qual não resultarão senão maus poemas. Ao contrário, na
senda de Ruy Belo, creio eu que um artista deve criar como vive, amando,
destruindo-se naquilo que cria, como por fusão nos destruímos naquilo que
amamos. A violência vem da ordem que se altera, não do fim que se impõe.
Minhas filhas, o poema não recusa a vida como a morte o faz, o poema aceita a vida tal como ela é: contraditória, paradoxal, absurda, bela e horrível na mesma proporção. Talvez a falácia surja dessa tendência para substituir deus pela poesia, ou para fazer da poesia um avatar do sagrado, como se tudo não se passasse num corpo, o nosso, que é o princípio e o fim de tudo quanto nos acontece. Não julgueis, minhas queridas, que por dar termo a esse corpo alguém manifesta ou deixa de manifestar poesia. Poético é o acaso de sermos minúsculos grãos de poeira neste vastíssimo universo que, por medo ou necessidade, procuramos reduzir ao significado que atribuímos a nós mesmos e não temos, assim disfarçando a terrível evidência de que tudo não passa de um equívoco. Um mal-entendido, esta importância que nos damos.
4 comentários:
É um dos teus textos mais belos, mais poéticos, seja lá o que isso for.
Esse livdinho é mui guapo, tambem cono objecto, e este texto mui bueno é. Agora, o Mãe pode escrever coisas em forma de versos, mas chamar-lhe poeta é muifa condescendência
Um mal entendido que nos condiciona e subjuga, por mais que tentemos ver pelos olhos doutrem. Provavelmente já leste mas deixo-te este do David Foster Wallace. Lembra que a vida humana é o seu próprio encarceramento, pois faz de cada um de nós, o centro.
https://www.brainpickings.org/?s=this+is+water
Muito obrigada.
Obrigado. Saúde.
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