Pudemos ver há dias, na RTP 2, A Toca do Lobo (2015), documentário dedicado à memória do escritor Tomaz de Figueiredo (n. 1902 – m.
1970). Trabalho sensível, o filme da realizadora Catarina Mourão (n. 1970),
neta do escritor, toma como plataforma relatos domésticos, pessoais, familiares, para mergulhar nos arquivos de uma descendência
desavinda. Impedida de aceder à generalidade do espólio do avô, agarrou-se ao
que pôde para refazer o laço de uma herança perdida. Reencontro com o passado, A
Toca do Lobo expõe momentos altamente marcantes e comoventes sem disfarçar as
feridas por sarar, quer do contexto familiar em que o filme se enraíza, quer do
tempo histórico para o qual remete.
Na História da Literatura Portuguesa
assinada por António José Saraiva e Óscar Lopes, Tomaz de Figueiredo ocupa meia
dúzia de linhas. No entanto, o entusiasmo é evidente: «deve ter sido um dos
melhores ficcionistas, quer pela originalidade da intriga, em que aliás se reintegra
por vezes o novelesco camiliano, quer por uma prosa flexivelmente castiça» (p.
1031). A Toca do Lobo, romance de estreia publicado em 1947, acabou por se tornar
o seu livro mais conhecido, mas o carácter multímodo da obra afirma um escritor por redescobrir. Além de romances, novelas e contos, traduziu Colette,
deu à estampa sonetos, poemas em prosa, um longo poema intitulado Viagens no
Meu Reino (1968), escreveu para teatro.
O filme de Catarina Mourão mostra-nos o
retrato de um homem sensível, mas fortemente abalado pela incompatibilidade dos
encargos profissionais (“violência de vida”) com a dedicação à actividade
literária. Formado em Ciências Jurídicas, o autor de Nó Cego (1950) trabalhou como notário na Nazaré, em
Ponte da Barca e Estarreja. A separação da família fez dele um pai ausente,
nomeadamente junto da filha mais nova. Em 1957, colocado em Estarreja, sofreu
uma depressão. Não é exacto o diagnóstico que levou a internamento no
Hospital do Telhal, resultando da investigação levada a cabo pela neta a
hipótese de ter sido um pretexto para fugir à prisão. Certo desleixo
profissional terá facilitado um desfalque cuja responsabilidade assumiu sem dele
ter sido culpado directo.
Sonetos da Casa Amarela (Douda Correria, Outubro de
2020) recupera o conteúdo de um envelope enviado, durante o período de
internamento, à mulher com quem casara e de quem acabara por se separar. Em
nota introdutória, Catarina Mourão vai directo ao assunto: «Na família, o meu
avô era visto como um excêntrico porque preferia a profissão de escritor à de
notário, e o seu internamento, no Hospital do Telhal, onde foi tratado com
choques eléctricos, constituiu sempre um tabu» (p. 3). Além dos 27 sonetos, reproduzidos
em letra de máquina e manuscritos, o volume da Douda Correria contém ainda um
conjunto de fotografias, recolhidas do arquivo do Museu São João de Deus, que
de algum modo retratam o ambiente vivido no Hospital onde os poemas foram
escritos.
Nada têm que ver estes sonetos com as obras artísticas produzidas por
outros autores em condições similares, estejamos a falar do estilhaçamento linguístico
identificável num Ângelo de Lima (n. 1872 – m. 1921) ou de diversos exemplos de
arte bruta a que temos acesso, por exemplo, através de um volume como Almas
Delirantes —
do Telhal a Rilhafoles (Douda Correria, Março de 2019). Em Sonetos da Casa
Amarela o que mais perturba é a sobriedade e a lucidez da escrita, mas também a
solidez de uma consciência de si que duvida da loucura diagnosticada para
denunciar uma injustiça materializada nos tratamentos administrados: «Há
injecções que valem dinamite, / que, à falsa-fé, sem manha que as evite, /
brutais, vão rebentar dentro do crâneo» (p. 6).
Das descrições do ambiente
vivido no “manicómio” onde os “doidos” são tratados como “gado” à manifestação
de uma condição existencial privada de dignidade, o que atravessa estes versos
é a dúvida acerca da condição do sujeito, da sua relação com o mundo e com
Deus, numa oscilação emocional que põe em causa fé e esperança. Inconformismo,
injustiça, dão lugar a despedidas não consubstanciadas senão pelo sofrimento e
a súplicas desesperadas: «Estrelas que brilhais no céu curvado, / Chamai-me
para vós, sou vosso irmão. / Lá porque me esporeia a danação, / tanto sou, como
vós, iluminado» (p. 29). A uma normalidade indesejada contrapõe-se, nestes
sonetos, o diagnóstico de uma loucura mais do que duvidosa, sobressaindo neles o
sofrimento atroz de um homem impedido de se realizar no tempo e no espaço que
lhe coube viver:
Rasga-te, angústia minha, em versos loucos,
desforra-te em criar beleza inútil
sabendo quanto é vão, inerte e fútil
isso de te arrasares, em ânsia, aos poucos.
Que vale que tu soltes gritos roucos
nessa alva de suplícios, inconsútil
se nada alcança de profícuo e útil
a invisível estátua sem caboucos?
Mas tu, e com coragem sempre nova,
soergues-te do mal da tua cova,
cuspindo, triste, beijos e sarcasmos,
enquanto, no mistério da Natura,
te fura, te perfura e desfigura,
do crâneo ao ventre, o chuço dos espasmos.
1 comentário:
Na programação da RTP2 não está previsto passarem novamente o documentário nos próximos tempos. Alguém com box tem maneira de passar o documentário para formato digital, por favor? Na RTP play não está. Obrigado.
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