domingo, 10 de janeiro de 2021

SONETOS DA CASA AMARELA

 
Pudemos ver há dias, na RTP 2, A Toca do Lobo (2015), documentário dedicado à memória do escritor Tomaz de Figueiredo (n. 1902 – m. 1970). Trabalho sensível, o filme da realizadora Catarina Mourão (n. 1970), neta do escritor, toma como plataforma relatos domésticos, pessoais, familiares, para mergulhar nos arquivos de uma descendência desavinda. Impedida de aceder à generalidade do espólio do avô, agarrou-se ao que pôde para refazer o laço de uma herança perdida. Reencontro com o passado, A Toca do Lobo expõe momentos altamente marcantes e comoventes sem disfarçar as feridas por sarar, quer do contexto familiar em que o filme se enraíza, quer do tempo histórico para o qual remete. 
   Na História da Literatura Portuguesa assinada por António José Saraiva e Óscar Lopes, Tomaz de Figueiredo ocupa meia dúzia de linhas. No entanto, o entusiasmo é evidente: «deve ter sido um dos melhores ficcionistas, quer pela originalidade da intriga, em que aliás se reintegra por vezes o novelesco camiliano, quer por uma prosa flexivelmente castiça» (p. 1031). A Toca do Lobo, romance de estreia publicado em 1947, acabou por se tornar o seu livro mais conhecido, mas o carácter multímodo da obra afirma um escritor por redescobrir. Além de romances, novelas e contos, traduziu Colette, deu à estampa sonetos, poemas em prosa, um longo poema intitulado Viagens no Meu Reino (1968), escreveu para teatro. 
   O filme de Catarina Mourão mostra-nos o retrato de um homem sensível, mas fortemente abalado pela incompatibilidade dos encargos profissionais (“violência de vida”) com a dedicação à actividade literária. Formado em Ciências Jurídicas, o autor de Nó Cego (1950) trabalhou como notário na Nazaré, em Ponte da Barca e Estarreja. A separação da família fez dele um pai ausente, nomeadamente junto da filha mais nova. Em 1957, colocado em Estarreja, sofreu uma depressão. Não é exacto o diagnóstico que levou a internamento no Hospital do Telhal, resultando da investigação levada a cabo pela neta a hipótese de ter sido um pretexto para fugir à prisão. Certo desleixo profissional terá facilitado um desfalque cuja responsabilidade assumiu sem dele ter sido culpado directo. 
   Sonetos da Casa Amarela (Douda Correria, Outubro de 2020) recupera o conteúdo de um envelope enviado, durante o período de internamento, à mulher com quem casara e de quem acabara por se separar. Em nota introdutória, Catarina Mourão vai directo ao assunto: «Na família, o meu avô era visto como um excêntrico porque preferia a profissão de escritor à de notário, e o seu internamento, no Hospital do Telhal, onde foi tratado com choques eléctricos, constituiu sempre um tabu» (p. 3). Além dos 27 sonetos, reproduzidos em letra de máquina e manuscritos, o volume da Douda Correria contém ainda um conjunto de fotografias, recolhidas do arquivo do Museu São João de Deus, que de algum modo retratam o ambiente vivido no Hospital onde os poemas foram escritos.
   Nada têm que ver estes sonetos com as obras artísticas produzidas por outros autores em condições similares, estejamos a falar do estilhaçamento linguístico identificável num Ângelo de Lima (n. 1872 – m. 1921) ou de diversos exemplos de arte bruta a que temos acesso, por exemplo, através de um volume como Almas Delirantes do Telhal a Rilhafoles (Douda Correria, Março de 2019). Em Sonetos da Casa Amarela o que mais perturba é a sobriedade e a lucidez da escrita, mas também a solidez de uma consciência de si que duvida da loucura diagnosticada para denunciar uma injustiça materializada nos tratamentos administrados: «Há injecções que valem dinamite, / que, à falsa-fé, sem manha que as evite, / brutais, vão rebentar dentro do crâneo» (p. 6). 
   Das descrições do ambiente vivido no “manicómio” onde os “doidos” são tratados como “gado” à manifestação de uma condição existencial privada de dignidade, o que atravessa estes versos é a dúvida acerca da condição do sujeito, da sua relação com o mundo e com Deus, numa oscilação emocional que põe em causa fé e esperança. Inconformismo, injustiça, dão lugar a despedidas não consubstanciadas senão pelo sofrimento e a súplicas desesperadas: «Estrelas que brilhais no céu curvado, / Chamai-me para vós, sou vosso irmão. / Lá porque me esporeia a danação, / tanto sou, como vós, iluminado» (p. 29). A uma normalidade indesejada contrapõe-se, nestes sonetos, o diagnóstico de uma loucura mais do que duvidosa, sobressaindo neles o sofrimento atroz de um homem impedido de se realizar no tempo e no espaço que lhe coube viver:
 
Rasga-te, angústia minha, em versos loucos,
desforra-te em criar beleza inútil
sabendo quanto é vão, inerte e fútil
isso de te arrasares, em ânsia, aos poucos.
 
Que vale que tu soltes gritos roucos
nessa alva de suplícios, inconsútil
se nada alcança de profícuo e útil
a invisível estátua sem caboucos?
 
Mas tu, e com coragem sempre nova,
soergues-te do mal da tua cova,
cuspindo, triste, beijos e sarcasmos,
 
enquanto, no mistério da Natura,
te fura, te perfura e desfigura,
do crâneo ao ventre, o chuço dos espasmos.

1 comentário:

Gonçalo Fernandes disse...

Na programação da RTP2 não está previsto passarem novamente o documentário nos próximos tempos. Alguém com box tem maneira de passar o documentário para formato digital, por favor? Na RTP play não está. Obrigado.