quarta-feira, 17 de março de 2021

UM SONETO, UMA CANÇÃO E BADANAS

 


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Pulcro sepulcro caiadinho e tudo,
neste monturo a que chamamos mãe,
insisto em existir em tempo entrudo
xibante máscara de enganar ninguém.

Eis por que a dor nada acrescenta ao mudo
poço do eco tardo. Vem bellem
untuosa, no roxo cardealudo
(luminiscente e tudo) da opulen-

Cia desesperada e sem saída
ratear ainda a rasa mal medida
do exausto coração sem testemunho.

Queremos, sem mais razão do que nenhuma,
rezar com fé à fé de termos uma
última fé em algo sem tamanho.

*

ària em el apoetése de plurais

Dilatação das coronárias
fumigação de coronéis
coroação de funcionárias
que a vinte e seis papam donzéis
corneações já partidárias
de cavalinhos de carrosséis
osgas-cabrões, ratas falsárias
martas zézinhos ritas manéis
trazem de luto as dores canárias
e no escorbuto ouro de aneis
o absoluto mudou as árias
das cifras várias e faz pasteis
com as razões mais extraordinárias
e comissões de veterinárias
apalpam pasmos espasmam corcéis
do amor recibo das semennárias
traças de arquivo que lambem méis
grossos, lascivos, das luminárias
abelhas sábias rés de bordéis
que voam sós nos céus das várias
autoridades de cascavéis
plenipo putenciárias
filhos de apuros bem o sabeis
a morte é lenta e as três marias
são quasi virgens, rica vintage
de trinta e três, licor de leis
licor de lérias primor das tárdias
hemo petizes  perdizes débeis
da caça fina grossa de asnárias
discursativas odes cruéis
descansativas gódes por árias
e ventos vários showsando seis
glândulas nulas lulas mamárias
com leite ralo de hall de hotéis
galeões canela e naus corsárias
porões à vela stripastíseis
de membros mísseis desorbitais
falos passíveis de mil e seis
centos incríveis conventuais
maneiras cruas mas cozinháveis
de servir frios mas desejáveis
a servir mortos mas comestíveis
a servir podres mas digeríveis
a servir chochos mas toleráveis
a servir escravos mas algemáveis
no alguidar das leis  agrárias
pataca a mim pataca às várias
patas e ratas patarratárias
zitas e paras parasitárias
parras com guitas nas nadegárias
autoridades alfandegárias
da raia aflita dos impossíveis
polvos gigantes indivizíveis
que irmãos nos cindem o bem possível
no cono interno da alimária.

*

JOÃO PEDRO GRABATO DIAS

   João Pedro Grabato Dias é um poeta sem rosto social. O livro que hoje se oferece ao público é o livro de um poeta excepcional que habita um cidadão que ninguém conhece.
   Em 1968, o júri do Prémio de Poesia do Concurso Literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques, (constituído por Rui Knopfli, Orlando Mendes, Eduardo Parreira, Maria de Lourdes Cortez e Eugénio Lisboa) foi surpreendido ao deparar, de entre a massa compacta de poemas concorrentes, com um texto de qualidade excepcional, sem título, assinado com um pseudónimo que depois se verificou pertencer ao poeta João Pedro Grabato Dias. Foi, se bem nos recordamos, o único trabalho que obteve desde o primeiro instante, a unanimidade incontroversa. O júri dos outros prémios — alguns bastante controversos — pareceu surpreendido com o acordo total e imediato no Prémio de Poesia. Um dos membros do júri de Poesia resolveu por isso mostrar a razão desse acordo e leu o poema em voz alta. E parece que a ninguém mais restaram dúvidas.
   Como dois dos membros desse júri dirigiam também a página de Artes e Letras do semanário «A Voz de Moçambique», decidiram publicar lá, no número 303, de 25 de Janeiro de 1969, o poema premiado. A ideia escondida era estabelecer, por essa forma, contacto com o misterioso poeta laureado. Pensava-se que ele escrevesse a V. M., que para lá mandasse, eventualmente, outros poemas... Nada aconteceu. João Pedro Grabato Dias não foi sequer (até hoje!) levantar o montante do Prémio à Câmara Municipal de Lourenço Marques.
   Por fim, há poucas semanas, apareceu ao signatário, com um punhado de sonetos que hoje se publicam. Deixemos de lado o choque por nós sofrido ao vermos finalmente o rosto do cidadão João Pedro Grabato Dias. Por uma vez, o personagem correspondia ao texto e «o homem que a obra faz supor» era igual «ao homem que fez a obra»... Os sonetos traziam de novo aquela voz singular ulcerada e mitológica, ensimesmada, onírica, irònicamente realista, brutal, descabelada, ardentemente bizarra, reveladora de um mundo fantasmagórico e quase demasiado verdadeiro, traduzido por uma extraordinária «fauna léxica» que a um tempo nos subjuga e desorienta...
   Estes sonetos são apenas parte da abundante produção do Poeta João Pedro Grabato Dias. Esperemos que a publicação deles possa encorajar o seu enigmático autor a outros empreendimentos — com o que só terá a lucrar, dizemo-lo sem receio, a Poesia Portuguesa.

Eugénio Lisboa

João Pedro Grabato Dias, in Sonetos de Amor e Circunstância e uma Canção Desesperada, capa de António Quadros, texto de badana de Eugénio Lisboa, Prémio Reinaldo Ferreira 1968, 1.º Prémio do Concurso Literário da Câmara Municipal de Lourenço Marques, edição do autor, Lourenço Marques, 1970, p. 26, pp. 58-59.

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